Exatamente 10 anos atrás, A Partida (Okuribito/Departures) de Yojiro Takita surpreendia a todos no Oscar e ganhava o prêmio de melhor filme estrangeiro, batendo os dois medalhões favoritos: o vencedor da Palma de Ouro em Cannes Entre os Muros da Escola e o cultuado Valsa com Bashir. De lá para cá, a vitória funcionou como uma maldição para o filme, que praticamente caiu no esquecimento em comparação aos dois derrotados da noite, que até hoje, ainda são lembrados pelo público e crítica.

A Partida faz parte de um caso comum na Academia que é o tipo de filme que ganhou uma reputação ruim por vencer outras obras mais celebradas. Só que diferente de alguns vencedores do Oscar como Shakespeare Apaixonado, Quem Quer Ser um Milionário? e O Discurso do Rei merecedores do puro esquecimento, o filme japonês mesmo com pequenas “gordurinhas” melodramáticas empregadas de forma excessiva, ainda continua uma história sensível que merece ser redescoberta, graças ao seu apelo universal de se apropriar de uma temática dolorosa que é a proximidade e aceitação da morte.

Daigo (Masahiro Motoki) é um violoncelista que perde o emprego numa orquestra de Tóquio e decide retornar para o interior do país para residir na antiga casa da mãe falecida, ao lado da esposa. Lá, arruma um emprego que incomoda sua vizinhança: ele é encarregado de preparar os mortos para seus funerais.

A Partida segue a tradição japonesa cinematográfica de utilizar a morte para falar sobre a vida com humor, leveza, sensibilidade e força poética como os ótimos Viver de Kurosawa, Depois da Vida de Koreeda e Floresta de Lamentos de Kawase. Takita que até então tinha dirigido diversos filmes eróticos, revela uma bela sensibilidade para deixar o seu drama emocional terno e profundo através da plasticidade como constrói suas cenas.

A sequência de Daigo tocando ao ar livre em um belo pôr-do-sol, enquanto em paralelo observamos cenas dos velórios que o personagem participa, eleva o filme a uma plasticidade visual elaborada nos seus planos artísticos. A câmera de Takita mostra-se apurada para as pequenas coisas, captando com ternura os rituais de preparação dos cadáveres, assim como os sentimentos das pessoas em volta deles.

O principal ponto elogiável no aspecto técnico é a lindíssima trilha sonora do filme, feita com destreza (e uma frieza extremamente calculada) para sensibilizar os corações mais duros, ao mesclar uma trilha instrumental intimista com composições de Beethoven e Schubert para mergulhar o espectador em momentos  emocionais, e há pelo menos duas cenas que provocam grande catarse emocional que será difícil o público não ficar com  os olhos marejados.

É claro que o texto escrito pelo iniciante Koyama é que reside sua maior força, ao propor uma bela discussão sobre vida e morte através da linguagem lírica competente por utilizar uma cerimônia fúnebre para ilustrar que o luto e as perdas afetivas podem servir de superação na valorização da vida. Ainda que não esconda seu lado esquemático, o roteiro do filme é rico em simbologias e que sabe se apropriar de um tema sombrio para contextualizá-lo em algo belo e acessível, utilizando um humor cômico escrachado em vários situações.

Alguns arcos propostos por Takita e Koyama para Daigo se baseiam nestas metáforas para caracterizar um jovem em conflito com perdas do seu passado (um órfão que não velou seus pais) e, de repente, aprende a velar os dos outros. Neste aspecto, o grande atrativo do filme é a sensibilidade que trabalha a situação da perda e morte na cultura japonesa. A morte é vista como um processo natural, edificante e sem medos, e por isso sua ressignificação – como diz um dos personagens do filme, a morte é a porta para outra vida – é fundamental para uma nova percepção sobre o sentido da vida.

Neste caminho, o roteiro também trabalha com diversas outras partidas simbólicas que temos na vida: dos pais que abandonam os filhos, o fim das instituições tradicionais abandonadas em virtude da vida moderna e a perda das percepções humanas ou sentido das coisas. O destaque nas atuações vai para o veterano Tsutomu Yamasaki como o chefe de Daigo, enquanto o jovem Masairo Motoki impressiona pelo domínio entre as cenas mais cômicas e as mais dramáticas, principalmente pela facilidade como expressa suas emoções dentro de um jogo facial interessante.

É verdade que apesar do roteiro previsível, esquemático e repleto de clichês que fazem o filme ficar com cara de uma telenovela, nada disso diminui a força poética de A Partida. No geral, ele oferece uma bela mensagem de que não podemos impedir as partidas, mas podemos ressignifica-las em nossas vidas.

Não era o melhor filme entre os indicados da categoria estrangeira, mas isso não tira os seus méritos da sua vitória. É um daqueles filmes para você assistir depois de comprar todo o estoque de lenços da farmácia do bairro. Takita imprime seus signos e símbolos que são traduzidos numa pedra que porta uma significação pertinente que marca tanto o fim como o começo de uma vida. É uma obra que comove e fica armazenado na memória, graças a sua belíssima história. Uma ótima pedida para aqueles momentos de crises existências que atravessamos durante a vida.