Mês passado, um dos mais divertidos filmes de ação da década de 1990, e o mais absurdo, completou seu vigésimo aniversário: A Outra Face de John Woo. Como fã do gênero, do filme e do seu diretor, eu não poderia deixar passar em branco a data, portanto acompanhem-me agora enquanto eu listo as cinco razões pelas quais A Outra Face é um Jovem Clássico do cinema, em minha opinião. Ah, vão aparecer alguns pequenos spoilers a seguir, ok?


É o melhor filme americano de John Woo

Existem muitos diretores de cenas de ação, mas acima de todos eles está o maestro John Woo. Nascido na China, Woo fez carreira em Hong Kong. Influenciado por nomes ocidentais como Sam Peckinpah, Martin Scorsese e Jean-Pierre Melville, Woo dirigiu alguns dos maiores filmes de ação de todos os tempos: Alvo Duplo (1986), O Matador (1989), Fervura Máxima (1992), todos estrelados pelo grande Chow Yun-Fat. Seus filmes eram verdadeiras óperas grandiosas onde os heróis e vilões usavam uma pistola em cada mão, raramente as recarregavam, e realizavam façanhas impossíveis, muitas vezes em câmera lenta.

Woo foi para Hollywood, trazido pelo astro Jean-Claude Van Damme, com quem trabalhou em O Alvo (1993). Curiosamente, apesar de o diretor ter passado mais de uma década nos Estados Unidos, nenhum dos seus filmes por lá chegou perto dos seus trabalhos de Hong Kong. Exceto por A Outra Face. Aqui temos Woo criando o mais épico dos seus duelos e trabalhando com um grande orçamento. Sua visão e suas histórias deixaram marcas profundas no gênero: o que seria de John Wick sem o John Woo?



O enredo é deliciosamente absurdo

Em A Outra Face, John Travolta é o obcecado agente do FBI Sean Archer, e Nicolas Cage vive o mega-terrorista Castor Troy. Para impedir um atentado do terrorista, o herói troca de rosto com o vilão via cirurgia, e se infiltra na sua gangue. Porém, no meio tempo Troy adquire o rosto de Archer e assume seu lugar como herói do FBI e homem de família.

A princípio os produtores queriam ambientar o filme no futuro para deixar a coisa mais verossímil, mas Woo chutou o balde e recusou essa ideia. O resultado é uma história na qual Cage, magro e de rosto fino, se transforma no cheinho e bochechudo Travolta, e ambos têm tipos sanguíneos diferentes, o que inviabilizaria o tal transplante de rosto. Além disso, a certa altura da história o herói foge – a nado? – de uma prisão ambientada numa plataforma no meio do mar (!).

Se você quiser realidade, não veja A Outra Face. Mas se você aprecia passar duas horas e pouco no mundo mais intenso e empolgante dos filmes de ação (bons), então esse filme é para você.



É um claro exemplo de blockbuster autoral

O conceito de dualidade, de oposição entre bem e mal, sempre foi importante na obra de Woo, e aqui a dualidade atinge sua expressão máxima, com cada um dos atores interpretando tanto o mocinho quanto o vilão da trama. E se trata de uma trama conduzida pelos personagens, que de novo servem para John Woo explorar outros temas que trouxeram conteúdo emocional aos seus trabalhos no Oriente, como a conexão entre homens em lados opostos da lei, o absurdo (e também a beleza) da violência, honra, e falta dela. A Outra Face é cheio de tiros e explosões, mas é também capaz de emocionar em alguns momentos.



É o duelo da atuação mais “grandiosa”: Travolta vs. Cage

Na época em que o filme foi realizado, John Travolta e Nicolas Cage eram dois dos maiores nomes de Hollywood. O primeiro ainda estava na crista da onda pelo sucesso de Pulp Fiction (1994), e já tinha trabalhado com Woo antes, como vilão, no bom e hoje esquecido A Última Ameaça (1996). E o segundo havia ganhado o Oscar de Melhor Ator pelo dilacerante drama Despedida em Las Vegas (1995). Curiosamente, depois do Oscar Cage realizou a sua “trilogia de filmes de ação”, tendo estrelado em seguida A Rocha (1996) de Michael Bay, Con Air: A Rota da Fuga (1997) de Simon West, e A Outra Face. Todos ainda hoje são lembrados com carinho pelo grande público, mas A Outra Face é o maior deles.

O curioso no filme é ver Travolta e Cage estabelecendo seus personagens no início, para depois vemos um imitar o outro. Travolta imita Cage à perfeição, arrancando risos, e também se diverte a valer por ser o vilão pela maior parte do filme. Já Cage… Bem, que me desculpem os fãs do eterno Tony Manero, mas se existe um duelo de atuação em A Outra Face, Cage sai vitorioso. Vamos já detalhar por que…

Ah, o elenco de apoio do filme é muito bom também. Entre a grande lista de character actors presentes no filme, Joan Allen se destaca como a esposa de Archer. É ela quem traz dignidade e estofo emocional aos absurdos da trama. Sem ela, o filme não funcionaria.


Cage, o mito

Sério, o que Nicolas Cage faz em A Outra Face só pode ser expresso com cenas do próprio filme:

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Primeira aparição de Castor Troy, vestido de padre e agarrando o traseiro de uma moça do coro

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Momento “Vou tirar o rosto dele!”

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Reflexo no espelho

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Loucura na prisão

É uma das atuações mais surtadas e elétricas do ator, e que engloba um grande espectro de emoções, e esses são apenas alguns exemplos. Às vezes canastrão, às vezes sensível, e um herói de valor na maior parte do filme, a atuação de Nicolas Cage em A Outra Face é digna de estudo. Hoje em dia damos risada dele e dos filmes de gosto duvidoso que dominaram a sua carreira, mas Cage é quase sempre um ator imprevisível e maluco, e isso o torna, quando bem dirigido, uma figura ainda cativante de se assistir. Ele é um dos motivos pelos quais A Outra Face é um clássico. Se você nunca o viu nesses 20 anos, ou se faz tempo que você não o revê, fica a recomendação: veja-o acompanhado de um grande balde de pipoca. John Woo nunca foi um cineasta que pensa pequeno, e neste caso encontrou dois atores capazes de igualá-lo. E graças a esse encontro, o cinema de ação ganhou um clássico, e um dos melhores e mais criativos representantes do gênero na década de 1990.