Uma das teorias de vida defendidas pelo personagem Sick Boy em Trainspotting: Sem Limites é a de que todo mundo só tem um ponto alto na carreira e, conforme ficamos mais velhos, a vida vai declinando progressivamente e se tornando uma sucessão de fracassos. Assim, David Bowie nunca será Ziggy Stardust de novo e Lou Reed nunca será tão bom quanto na época do The Velvet Underground, por mais legais que a gente finja que são – e, no caso do cinema, nem Os Bons Companheiros, de Martin Scorsese, se salva dessa teoria. Se seguíssemos essa lógica do personagem à risca, não seria difícil encontrar o ápice do britânico Danny Boyle em sua carreira como diretor, e um feito que provavelmente não tem mais como se repetir: o próprio Trainspotting, que completa agora seus 20 anos com status de cult e ainda tão refrescante como na época do lançamento.

Baseado no livro de mesmo nome de Irvine Welsh, publicado em 1993, Trainspotting é um mergulho de cabeça no submundo marginal de Edimburgo, na Escócia, no fim dos anos 80 e começo da década de 90, acompanhando as vidas de quatro amigos que compartilham o vício em heroína, pequenos delitos (ou nem tanto) e um estranho senso de companheirismo (pelo menos na maior parte do tempo). À frente deles, nos guiando por aquele estranho universo, está Mark Renton, vivido por Ewan McGregor, repetindo a parceria com o diretor iniciada em um de seus primeiros filmes, Cova Rasa (1994). É o monólogo interno de Renton, que acompanhamos com frequência através de uma narração em off, que serve como bússola para os conflitos do filme.

É curioso, aliás, que Renton e Sick Boy mencionem Os Bons Companheiros de passagem em uma das cenas, já que este é claramente uma referência para o filme de Boyle. Assim como o longa de Scorsese foi acusado de glamourizar a máfia ítalo-americana e seu modo de vida, quando na verdade só expunha o ponto de vista de seus personagens e suas ações, Trainspotting foi inicialmente acusado de ser uma obra pró-drogas, quando na verdade é apenas pragmática. Não é à toa que o diretor conte que, hoje em dia, há frequentemente pedidos de escolas para exibirem o filme a seus alunos, ainda que soe no mínimo inusitado pensar numa dessas sessões. Afinal, o que acontece é que Boyle opta por embarcar sem reservas nas viagens lisérgicas de seus personagens, buscando expressar visualmente as sensações por trás do vício na heroína, mas sem hesitar em mostrar também o lado mais funesto que persegue os usuários da droga, o que se revela muito mais eficiente do que qualquer julgamento rasteiro de seus personagens e foge também de qualquer aspecto panfletário – até porque, no universo de Trainspotting, moralidade é um conceito bem questionável. O resultado é um filme que choca quando necessário, mas investe em muito sarcasmo e sarcasmo pelo caminho.

“Escolha uma vida, escolha um emprego, escolha uma carreira”: surrealismo ao som de punk e britpop

Na época de seu lançamento, o filme foi vendido à Miramax pelo produtor Andrew Macdonald como a “resposta britânica a Pulp Fiction”. A ideia fazia sentido: assim como o longa de Tarantino, Trainspotting usa e abusa de referências da cultura pop, e deixa sua marca na mesma com uma profusão de diálogos, personagens cativantes e amorais ao mesmo tempo e uma trilha sonora bem costurada.

O famoso monólogo de abertura de Mark Renton, ao som de Lust for Life, de Iggy Pop, já deixa bem claro a direção “estilosa” que Danny Boyle seguirá para dar tom ao filme. Principalmente em termos de trilha sonora, o diretor mostra ter aprendido bem tanto com Scorsese quanto com o contemporâneo Tarantino: do punk rock de Iggy Pop e Lou Reed ao britpop de Pulp e Blur e o techno de Underworld, todas as músicas ajudam não só a situar o espectador cronologicamente, mas também ambientam com exatidão a cena underground britânica e se conectam às paixões e situações dos personagens de forma quase hipnótica. É o caso, por exemplo, da overdose que Renton sofre ao som da irônica The Perfect Day, de Lou Reed, ou da crise de abstinência que se torna perturbadora com a construção lenta e obscura de Dark & Long (Dark Train) do duo Underworld ao fundo. Sobra espaço até para referências aos jovens também rebeldes e disfuncionais de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, no uso de uma suíte clássica de Carmen ou mesmo no Moloko Bar que vemos em determinado momento.

Kubrick se torna uma referência também para a fotografia adotada por Boyle, que usa constantemente a perspectiva com apenas um ponto de fuga, tão típica do cinema “kubrickiano”. O uso de lentes grande-angulares, com uma distância focal menor, também colabora ao ampliar a sensação de distância de espaços já amplos – na crise de abstinência de Renton, a imensidão ao seu redor se torna maior e mais sinistra à medida em que o surto se intensifica. A isso, Boyle inclui também intervenções gráficas e toques de surrealismo que quebram a narrativa, como a clássica ida de Renton a um oceano dentro do pior banheiro da Escócia.

Todos esses elementos são conduzidos com segurança pela direção de Danny Boyle, aliados a um elenco impecável, desde McGregor como protagonista, Jonny Lee Miller como Sick Boy e Robert Carlyle mostrando uma fúria psicótica sem limites como Francis Begbie. Ainda que tenha uma narrativa episódica e fragmentada, Trainspotting se mostra um acerto em vários níveis, capaz de injetar na veia do espectador uma dose de adrenalina exata que garantiu seu lugar como um novo clássico.

*Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.