Sob o Domínio do Medo de Sam Peckinpah é um daqueles trabalhos transgressores da década de 70 e muitas vezes esquecido quando comparado a outras produções “provocativas” do período. Nesta época, o cineasta já era conhecido no meio cinematográfico como “Bloody Sam” em virtude do seu fetiche pela violência e dentro do cinema mainstream, seu novo petardo foi lançado em 1971, mesmo ano das obras-primas Operação França de William Friedkin e Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. Ambos tinham premissas polêmicas e olhares críticos em relação à sociedade americana – era o início do fim do sonho americano – mas arrebataram o público e crítica, tornando-se cults instantâneos até os dias atuais. A obra de Peckinpah por sua vez, colecionou polêmicas e divergências devido o tom amoral, o que determinou o seu ostracismo no passar dos anos.

Mesmo não apresentando a mesma consistência narrativa dos outros dois citados, ele é o mais polêmico e inflamado trabalho da época, que sufoca e escandaliza o público pelo modo como discute as ações anti-sociais propostas pelo seu roteiro, no caso o bullying, preconceito, estupro, assédio moral e pedofília.  Do início até o final, tudo é realizado em um clima de constante tensão e mesmo passados quarenta e cinco anos do seu lançamento, continua intacto o mal-estar que proporciona ao espectador.

O matemático David Sumner (Dustin Hoffman, soberbo) é pacato cidadão norte-americano, casado com a bela e sensual Amy (Susan George). Eles se mudam para um vilarejo da Nova Inglaterra para fugir das tensões políticas dos EUA. O local é a cidade natal da mulher e a tranquilidade da aldeia, servirá para David terminar o seu livro. O problema é que ele está em ambiente hostil, repleto de homens rudes e beberrões. Enquanto enfrenta problemas conjugais – o casal não atravessa um bom momento no casamento – David precisa apagar a imagem de ser um covarde na concepção da esposa e pelo grupo de homens que ele contratou para consertar sua casa, entre eles, um ex-namorado de Amy que passa a cortejá-la. O clima tenso no local, só vai levar o tímido David a sair do seu entorpecimento emocional e mostrar com quantos paus se faz um homem.

Se atualmente no Brasil é discutida a cultura do estupro e o Estado do Amazonas testemunha ações violentas em relação as mulheres e crianças, o filme de Peckinpah serve como um ótimo instrumento de estudo. Sim, ele permite diversas leituras, por isso é compreensível a controvérsia que até hoje provoca, gerando interpretações de que o filme é reacionário, misógino e machista em relação a figura feminina – o que levou vários grupos feministas a protestarem na época. Isso é nítido em alguns diálogos travados entre David e Amy “Eles só faltam me comer com os olhos” reclama ela em certo momento, cobrando atitude do marido. “Quem se veste desse jeito não devia esperar outra coisa” retruca ele, direcionado a culpa para ela. São elementos que não fogem muito a regra do que acontece hoje na sociedade conservadora, onde a mulher é culpabilizada por sua postura comportamental enquanto a ação do homem é valorizada, por manter seu status quo de dominante.

Se por um lado há realmente estes fatores que depõem contra ele e pessoalmente concordo com os questionamentos feministas, em contrapartida temos argumentos que precisam ser enaltecidos dentro da proposta do filme. Um deles é o talento de Peckinpah em discutir a tendência da compulsão do homem para violência. Aqui, ele constrói uma narrativa densa e ambígua, que permite uma obra de diversos e ricos significados e dá abertura para as interpretações (boas ou ruins em relação a ele), sem perder a sua qualidade. Os personagens são desenvolvidos de forma complexa, tridimensionais dentro das suas contradições, que os tornam humanos. É difícil você não se identificar ou sensibilizar com as reclamações conjugais de David e Amy de um para o outro, ao mesmo tempo que você se irrita facilmente pela fragilidade de caráter de ambos frente seus papéis de marido e mulher.

Esta ambiguidade sempre presente no filme, é realmente a sua força motriz e charme, como se o próprio cineasta estimulasse sensações ambivalentes no espectador, onde ao mesmo tempo que choca, provoca a reflexão sob aquilo que se vê na tela. Um exemplo disso é na ótima cena de abertura, onde um plano aberto mostra crianças brincando e sorrindo para logo em seguida um zoom fechado fazer um close no busto de Amy, que veste uma blusa fina e sem sutiã, enquanto um homem solta um olhar malicioso. Este trabalho eficaz de montagem de poucos segundos, reproduz vários signos e significados em torno do próprio filme, e traduz bem o fim da inocência para o início da sexualidade, elementos que veremos confrontados até o seu final.

O controle narrativo de Peckinpah atinge o seu auge juntamente com a ambiguidade do texto na sequência que é a mais cruel (e famosa) do filme: o estupro. Nela, o recurso da montagem paralela se destaca, onde observamos ao mesmo tempo, David sendo enganado pelos homens, enquanto Amy sofre o abuso por parte de dois deles. Filmada de maneira interminável e agoniante, ela mostra a violência como algo que corrompe o espaço e pessoas a sua volta, e ganha forte ambiguidade nas reações faciais de Amy – há indícios que ela sofre ao mesmo tempo que sente prazer na relação sexual forçada. É uma cena “barril de pólvora” por evocar várias sensações em uma única cena através da montagem simples e eficiente. Sem dar tempo para digerir o que vimos, o diretor mostra logo em seguida David e Amy indo à igreja para a festa anual. Enquanto as crianças brincam e cantam, com o padre ao fundo fazendo o seu sermão, ela revive o estupro na sua mente em outra montagem paralela genial. É outra situação angustiante que mostra o comportamento neurótico em níveis insuportáveis.

Do ponto de vista textual, Sob o Domínio do Medo reproduz bem a escrotidão e alienação do ser humano frente aos valores sociais, é quase um tratado de como reproduzir nas raias do cinema, o olhar sobre a violência, não apenas em relação ao ser humano, seja ele homem ou mulher, do ataque aos valores familiares-sociais ou então do papel do Estado e da Lei frente a xenofobia. No fundo, tudo isso reflete um único contexto: a violência humana degradante que estrangula os seus pares sociais e potencializa a crueldade das relações.

É através da violência que Peckinpah reproduz um tema crucial para compreender seus trabalhos: a inadaptação social dos seus personagens. David é o representativo disso, uma pária social, um covarde que está no limiar da sua sanidade. Isso reflete no ato final tenso e sangrento, cujo saqueamento e ataque a casa de David e Amy pelos invasores, representa a falência da civilidade e à medida que a habitação vai ficando mais caótica, mais temos a certeza, que todas as amarras sociais – entenda isso como as leis – foram para o beleléu e o animal adormecido dentro do homem (a violência), acordou “Eu não vou permitir violência contra essa casa”, cita o cara mais racional do filme. É o fracasso da sociedade e das relações, pois o espiral de violência está instalado e não tem mais como voltar atrás. O que sobrou é o instinto de sobrevivência para defender o território e matar quem tentar mijar nele.

Sob Domínio do Medo é aquele tipo de filme controverso: você pode até se incomodar com sua visão dantesca misógina e reacionária, mas não tem como ficar imune a ela. Peckinpah realiza um dos estudos mais sólidos da sociedade, sem deixar de envolvê-lo numa embalagem crua, violenta e repulsiva. Se não chega a qualidade de suas outras obras-primas, é no mínimo corajoso e audacioso. Pessoalmente, hoje são poucos cineastas que enveredariam por um caminho tão polêmico como este. No confronto entre a civilização e a barbárie, o filme mostra que não há vitoriosos e sim perdedores. E mais assustador do que isso é pensar que a violência está mais presente dentro de nós do que na própria sociedade.