A representação de pessoas negras nas telas de cinema e a participação delas nas diferentes etapas da realização de um filme, em especial no roteiro e na direção, foram temas que permearam as discussões sobre os filmes da mostra competitiva do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que vai até domingo (24).

A curadoria do festival selecionou para a mostra filmes com diferentes representações de personagens negros, homens e mulheres, dirigidos por brancos e negros de ambos os sexos, de diferentes regiões do país. “Ao ver o que se apresentava, seria muito difícil a curadoria não perceber a importância que tinha essa discussão nesse momento. A gente não estava no papel de pautar uma discussão e encontrar os filmes, mas os filmes claramente nos colocavam a possibilidade de trazer essas questões”, disse à Agência Brasil o diretor artístico do Festival, Eduardo Valente.

A discussão começou intensa após a primeira noite da mostra competitiva. O filme Vazante, dirigido por Daniela Thomas, foi aplaudido após a exibição no último sábado (17), mas recebeu uma série de críticas de negros e negras durante o debate sobre a obra, realizado no dia seguinte com a presença da diretora e de parte do elenco. “Num filme de época, quando dirigido por um diretor branco, escrito por um roteirista branco, em geral, os atores negros fazem escravos. Escravos em geral são só escravos, não são pessoas, temos que pensar sobre isso, sobre a subjetividade das pessoas escravizadas”, questionou a atriz Mariana Nunez.

O ator Fabrício de Oliveira, que é negro e está no elenco de Vazante, disse que há subjetividade nos personagens, mas que o filme poderia estar “mais recortado para esse olhar, ainda mais sendo feito hoje”. Após assistir ao filme completo pela primeira vez durante o festival, o ator disse que o resultado despertou nele uma série de questionamentos. “Acho importante que esse filme seja realmente discutido, que a gente se coloque mesmo. Porque eu acho que ele traz essa questão do recorte estar sendo sempre pelo olhar branco, mas que ao mesmo tempo é parte da nossa história.”

Receptiva às críticas, a diretora Daniela Thomas afirmou durante o debate que hoje não faria o mesmo filme, mas considera que a obra terá um papel importante em fomentar esse tipo de discussão no cinema nacional. “Tratando-se de um branco e do ponto de vista da menina, vai suscitar muita discussão, mas ao mesmo tempo eu me sinto honrada e orgulhosa de poder estar no meio dessa discussão e ouvir essas vozes que eu ouço muito raramente. Para mim está sendo um aprendizado.”

Representatividade

A discussão sobre o protagonismo negro no cinema também foi tema central do debate sobre o filme Café com Canela, dirigido por Ary Rosa e Glenda Nicácio. “Para ser roteirista, preciso me alimentar de imagens, e tem várias que sempre me foram negadas historicamente. E a primeira que me alimentou ontem foi quando eu vi cinco mulheres negras subindo no palco pra apresentar um longa-metragem em Brasília”, comemorou a roteirista Francine Barbosa.

Além da diretora, todo elenco é de atores e atrizes negras. O filme é uma ficção ambientada no Recôncavo Baiano. A trama é protagonizada por duas mulheres que se ajudam em momentos cruciais da vida. Nas palavras da diretora, é um filme que trata de afeto e de encontro. “As atrizes se encontram, o filme se encontra, o público se encontra com o filme, aparentemente. O filme propõe um encontro com os nossos, com os que não foram vistos ou com os que são vistos sempre da mesma forma, no plano secundário.”

Glenda considera que a experiência de compartilhar a produção com outras mulheres negras potencializou o filme. “Me entendi melhor como mulher negra depois de ter feito Café [com Canela]”, afirmou a cineasta durante o debate.

Outro filme que suscitou debate sobre o tema foi a produção paraibana Nó do Diabo, dirigido por Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi. Dividida em cinco capítulos, a ficção de terror trata da herança escravocrata no Brasil.

Gabriel Martins, um dos diretores, disse que, por causa da temática, teve dificuldade de dirigir seu episódio e de assistir ao longa completo durante a sessão no festival. “Foi muito difícil porque ao mesmo tempo que existe para um uma crença clara e um entendimento de porque estar fazendo esse filme daquele jeito, é impossível negar o quanto de mim está ali também e o quanto daquela violência não se apagou.”

Críticas

O longa-metragem pernambucano Por trás da linha de escudos, de Marcelo Gomes, que retrata o cotidiano da Tropa de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, dividiu as reações da plateia após a exibição, entre vaias e aplausos, e recebeu duras críticas durante o debate. Uma delas veio da cineasta Jéssica Queiroz, diretora do curta Peripatético, que trata da execução de um jovem pela Polícia Militar após os ataques da facção criminosa PCC em 2006. A diretora se sentiu incomodada com uma cena do longa-metragem de Gomes em que o diretor acompanhou uma abordagem da tropa de choque em uma unidade para menores infratores. “Você tem corpos negros nus na cadeia, você tem aquela galera sentada em um ato de submissão e você nunca humaniza aqueles garotos, você não fala com eles”, criticou.

Gomes ouviu as críticas e ao final do debate disse que todas, mesmo as mais incisivas, estimulam a reflexão sobre seu trabalho. “O filme já teve sessões super tensas, a gente já ouviu falas muito contundentes contrárias e de rejeição ao filme, em nenhum momento eu achei que isso fosse uma censura ou um autoritarismo. O filme provoca uma reatividade emocional nas pessoas e eu entendo totalmente de onde ela vem e que isso gera evidentemente falas mais incisivas.”

“É uma conversa que muitas vezes deve ser tensa porque o assunto é duro, é difícil, o assunto se refere a uma situação histórica em vários graus dela, seja na arte, no audiovisual e na vida do Brasil”, analisou o diretor artístico do Festival, Eduardo Valente, que acredita que as discussões sobre o assunto devem continuar até a última sessão, que ocorre neste sábado (23).

Thamires Vieira, produtora-executiva do curta-metragem alagoano As Melhores Noites de Veroni e representante da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan), disse que parte da discussão atual é resultado dos debates que foram iniciados ano passado e que se refletem na participação de negros na comissão de seleção de longas-metragens e no júri oficial. “Ver pessoas negras nesses espaços faz com que tudo gire em questão pra que a gente consiga afunilar e alinhar o que a gente tá tentando discutir há muito tempo.” A Apan foi criada na edição do ano passado do Festival de Brasília, após um debate sobre a presença do negro no cinema.

da Agência Brasil