Para o cineasta norte-americano Samuel Fuller, as cores no cinema sempre deram vida a sétima arte. Para ele, contudo, é o preto e branco que é o responsável pelo realismo das coisas. A Lei dos Marginais (1961), reproduz não apenas esta visão fidedignamente como é a materialização real do espírito do cinema de guerrilha do diretor: o marginal, que no caos, violência e corrupção, reproduz o estado da natureza humana e das relações de poder.

 A Lei narra a história de Tolly Devlin (vivido na fase adulta por Cliff Roberts, o eterno tio Ben de Homem-Aranha, ator galã, de estilo canastrão que cai como uma luva para o papel), um delinquente juvenil que aos 14 anos vê seu pai ser assassinado em um beco. 20 anos depois, descobre que os autores do assassinato são figuras do alto escalão do sindicato do crime e resolve se infiltrar nele para pôr sua vingança em prática.

Se há algo genial por trás de A Lei dos Marginais é como Fuller estrutura o policial Noir a partir de uma temática pessoal como a vingança, para falar sobre a sociedade americana e apontar o dedo para as feridas de um país afundado pelo crime e tráfico na década de 60. É o bom e velho cinema crítico, de despertar colisões de emoções através dos seus questionamentos morais e sociais de uma civilização do pós-guerra, desmascarando a falta de harmonia e a hipocrisia americana por trás do discurso do sonho americano.

Quando Fuller mostra o pequeno Tolly presenciando o crime do pai em um beco escuro, as sombras de seus assassinos na parede, funcionam como uma bela metáfora de que o coração e valores americanos, são tragados pela violência dos becos mais sórdidos das grandes metrópoles, revelando que a moral e a ética lutam para sobreviver no grande hospício que é a vida.

É fácil observar que as mesmas pessoas que mataram o pai de Tolly, anos depois, controlam o sindicato do crime e as engrenagens de poder da sociedade, vendendo drogas nas portas da escola, subornando policiais, ditando as normas da sociedade. Neste ponto, as lentes do cineasta são simples e diretas: sem firulas ou rodeios, exercitam uma realidade opressiva de violência e marginalidade, conservando a virtuosa estética de tablóide como o cineasta ficou conhecido pela crítica cinematográfica, devido a facilidade que ele tinha de ir do melodrama mais puro para uma explosão da violência numa simples tomada – a transição de corte na cena que um Tolly feliz recebe um presente de Sandy (Beatrice Kay), sua figura materna dentro do filme, para o assassinato do pai é tão brusca, que Fuller revela que o amor e dor são parte do rito de passagem violento que a vida nos proporciona.

Não é à toa que nos filmes do diretor, o amor destrutivo de seus anti-heróis e seu mundo são dissolvidos em pura emoção, com legados movidos pela irracionalidade. Para Tolly não há outro caminho, senão a fatalidade da vingança pessoal, apesar de Cuddles (Dolores Dorn), seu interesse amoroso tentar demovê-lo da ideia. Destaca-se o quanto as personagens femininas em A Lei dos Marginais, representam a racionalidade e o bom senso de uma realidade misantrópica, enquanto os homens cegados por suas emoções, são guiados pelos impulsos destrutivos e suas cobiças. Pouco importa para eles a razão, afinal estão absorvidos na guerra urbana desumana, na qual a jornada emocional de Tolly carrega fortes contextos políticos de como o cineasta enxergava o seu país no início da década de 60.

Tudo isso é filmado pela decupagem elegante, hiperativa e implacável da mise em scène diabólica de Fuller que utiliza as luzes e sombras para capturar as relações de poder dentro da selva urbana que não poupa nem crianças com sua atmosfera niilista e marginal, de personagens malditos.  É inegável não olhar para este trabalho “fulleriano” e não pensar o quanto ele influenciou diversas obras policiais Noir na década de 60, assim como os filmes da máfia de Martin Scorsese como Caminhos Perigosos (1973) e Os Bons Companheiros (1990). Se duvidar, até Fernando Meireles se inspirou no filme, para tecer seu olhar social em Cidade de Deus (2002).

A estética preto e branco e as temáticas narrativas de A Lei dos Marginais, revelam que estamos diante de um mundo invisível aos olhos humanos, onde a vida habitual inexiste, existindo apenas a violência nas margens da sociedade, que se repetem diversas e diversas vezes ao longo das décadas. É a vida como ela é na sua emoção mais pura primitiva, dentro do caos urbano da civilização do novo século, que transforma o filme, numa obra atemporal mesmo passados mais de 50 anos do seu lançamento. Simples, cru e impactante no seu exercício fílmico, A Lei dos Marginais é outra aula de cinema de alto nível desta pária social chamada Samuel Fuller.


NOTAS

Samuel Fuller – 9
Roteiro – 9
Direção de Fotografia – 8,5


NOTA DO FILME – 9