A Segunda Guerra Mundial é certamente um dos capítulos da história mais abordados no cinema. Os horrores do conflito, dos campos de concentração e dos fronts de batalha já são mais do que conhecidos, mas ainda é raro notar mulheres como protagonistas das histórias – o universo da guerra ainda aparece como predominantemente masculino, e destina a elas o papel das coadjuvantes sofredoras. Assim, é ao buscar o oposto disso que Agnus Dei se torna, logo de cara, um filme particularmente especial: dirigido por uma mulher, filmado por uma mulher, roteirizado por mulheres, e tendo mulheres como protagonistas.

A perspectiva feminina é intrínseca ao filme da francesa Anne Fontaine (de Coco Antes de Chanel), que nos leva a dois locais não tão familiares a filmes de guerra: um convento habitado por freiras polonesas e um acampamento médico comandado pela Cruz Vermelha francesa. No acampamento, a jovem médica Mathilde Beaulieu (Lou de Laâge) recebe a visita inesperada de uma das freiras do convento, que busca ajuda para uma das irmãs. Ao atender o pedido, ainda que relutante, o que Mathilde encontra no convento é uma inconveniente e terrível verdade: uma comunidade de freiras traumatizada pelos eventos da guerra, estupradas por soldados soviéticos e alemães, várias delas em estágios diferentes de gravidez.

Assim como Mathilde passa a conviver com essas mulheres e a tentar ajudá-las e compreendê-las, o filme convida o espectador a adentrar no universo do convento e vivenciar as tensões do cotidiano das freiras. Nesse sentido, Fontaine dirige seu longa de forma admirável: mesmo as personagens sem nome têm seu background mais ou menos explorado, e a diretora evita julgar qualquer uma delas.

Muito pelo contrário: Agnus Dei não se esquiva de tocar em questões espinhosas, o que torna a experiência de assistir ainda mais desconfortante. Para Mathilde, comunista, ateia e cética, há um misto de sentimentos de compaixão e incredulidade, à medida que ela passa a entender melhor o mundo a seu redor; para as freiras, há os conflitos internos quanto a sua própria fé. O sofrimento da violência sexual traz uma questão incômoda para muitas delas: a corrupção do corpo, considerada um pecado especialmente caro a sua condição. Nesse contexto de muitos rostos e histórias a contar, a personagem da Irmã Maria, vivida por Agata Buzek com extrema sensibilidade, é uma das figuras mais interessantes, carregando em si um universo de dúvidas, ainda que sob o manto de uma fé quase inabalável.

Esse martírio diário é filmado com luz natural, que curiosamente deixa a atmosfera mais opressora, em um mundo repleto de brancos, pretos e cinzas. Por muitas vezes, o branco e preto dos hábitos das freiras se mistura ao branco da neve polonesa, sugerindo uma visão do próprio mundo como vítima de sofrimentos e batalhas entre forças internas opostas e contrastantes. Já a trilha sonora quase restrita aos cânticos das freiras torna a experiência mais íntima, silenciosa e reflexiva.

Agnus Dei só perde sua força, infelizmente, no ato final, quando resolve eleger a figura da Madre Superiora (vivida por Agata Kulesza, de Ida, um filme que se encaixaria perfeitamente numa sessão dupla com este aqui) como uma espécie de “vilã”, embarcando num maniqueísmo que não combina com o tom do resto do filme, e ao tentar forçar um final feliz que, embora satisfatório, soa tremendamente apressado. Mesmo assim, isso não chega a macular o filme: pela maior parte da projeção, Agnus Dei é uma obra com certa ousadia e feracidade, que dá vida a uma grande galeria de personagens femininas e as coloca como protagonistas de uma história que põe em discussão questões de fé, medo e dúvida, num registro (infelizmente) bem próximo da brutalidade do mundo real.