É muito difícil ser artista e alcançar o reconhecimento dos pares e do público em qualquer forma de arte. Talento, claro, é importante, mas muito depende de sorte, do timing e dos gostos da época em que se vive. O caso do italiano Mario Bava é um exemplo disso: Bava viveu em meio à arte, primeiro a pintura, depois a fotografia. O cinema foi algo natural em sua vida, por ser filho de um renomado diretor de fotografia dos primórdios da indústria cinematográfica italiana. Passou grande parte da vida em sets de filmagem, primeiro como diretor de fotografia e depois como diretor – somando as duas funções, trabalhou em mais de 100 produções. Como diretor, Bava era um verdadeiro esteta das imagens, mas não foi reconhecido em vida, principalmente porque fez apenas filmes do tipo que “o povão gosta”: épicos históricos, faroestes spaghetti, ação e, principalmente, suspense e terror.

A importância dele para estes últimos é imensurável. Afinal, Bava praticamente inaugurou o giallo, o thriller italiano, com A Garota que Sabia Demais (1963), cujo título já expõe a influencia de Alfred Hitchcock sobre a sua obra. Depois continuou explorando o gênero e fez um dos giallos definitivos com o maravilhoso Seis Mulheres para o Assassino (1964), misturou terror trash com ficção-científica em O Planeta dos Vampiros (1965), e fez também o melhor filme de terror estilo antologia da história do cinema com sua obra-prima Black Sabbath: As Três Máscaras do Terror (1963). Tudo com pouco dinheiro e muito apuro visual.

Ah, e de quebra ainda fez um filme slasher muito antes do subgênero dos assassinos sequer ser batizado nos Estados Unidos. Mais especificamente, fez um capítulo da franquia Sexta-Feira 13 quase dez anos antes dela se iniciar de verdade: Trata-se de Banho de Sangue. Em minha opinião, não chega a ser um grande filme, mas é um filme bom e interessante, e muito importante tanto para o gênero terror quanto para a carreira de Bava.

Banho de Sangue (também conhecido no Brasil pelo título antigo A Mansão da Morte) é um filme estranho. Nenhum dos personagens é particularmente simpático, e o mais próximo que a história tem de “protagonistas”, o casal vivido por Claudine Auger (ex-Bond girl) e Luigi Pistilli (rosto inesquecível da trilogia dos dólares de Sergio Leone), só entra realmente em foco quando metade do filme já se passou. E o final é bizarro, sugerindo que Bava e seus roteiristas não estavam levando as coisas muito a sério. Ou será que estavam?

O apuro visual do diretor é o que se destaca da experiência. Os primeiros diálogos só são ouvidos com quase 10 minutos de projeção. Antes disso, vemos uma senhora numa mansão – detalhe: ela está numa cadeira de rodas – sendo morta de forma meio extravagante. Depois, o sujeito que a matou – e Bava nos mostra o rosto dele – também é morto, agora por um assassino oculto. As facadas são mostradas em detalhes, o clima é sombrio e ficamos com a sensação de que eles só apareceram para morrer. Essa não é uma sensação conhecida de quem assiste a filmes slasher?

Pois bem, a velhinha era dona de um casarão à beira de uma baía. Um sujeito com pinta de galã (Chris Avram) quer tomar posse do lugar. O casal protagonista também. Na baía, vivem um estranho pescador (Claudio Volonté, irmão do grande astro Gian Maria Volonté), e um entomologista (Leopoldo Trieste) e a sua esposa vidente (Laura Betti). Ah, e tem também um grupo de jovens que quer curtir um pouco no lugar. Todo esse pessoal começa a sumir, um a um, nas mãos de um assassino desconhecido.

São impressionantes as similaridades com o subgênero slasher, e com Sexta-Feira 13 (1980), o primeiro, em particular. O diretor de Sexta-Feira 13, Sean S. Cunningham, até hoje jura de pés juntos que não viu o filme de Bava antes de fazer o seu slasher de baixo orçamento que acabou conquistando o mundo. Mas… A ambientação é muito semelhante – cenas no lago criam o mesmo clima de isolamento do longa norte-americano. Em dado momento uma moça se separa do grupo de jovens e vai nadar nua no lago, apenas para ser morta – enquanto isso a câmera desliza pelo seu corpo, até replicando o famoso “ponto de vista do assassino” que se tornaria comum nos slashers. Um sujeito leva uma foice na cara, e depois um casal é morto enquanto transa, trespassados por uma lança – essa cena foi descaradamente copiada em Sexta-Feira 13: Parte 2 (1981), mas a versão de Bava é mais perturbadora porque o casal ainda continua experimentando o prazer sexual por alguns momentos antes de morrerem.

Há um clima de “podreira” em Banho de Sangue. Bava abusa dos zooms, recurso visto com desdém pelo cinema já naquela época. Quando uma cabeça é decepada, Bava – que também foi o diretor de fotografia do filme – dá um zoom no boneco sangrando, e o efeito é ao mesmo tempo engraçado e horrível. E o clima amoral dos personagens contribui para essa sensação. Todos são malvados, até os protagonistas: quando não estão com medo, os personagens de Auger e Pistilli só brigam um com o outro. Com Banho de Sangue, o italiano não inventou apenas a ênfase nas mortes espetaculares que dominariam os slashers, inventou também o clima “sujo” e de permissividade moral, mas inegavelmente divertido, daquele subgênero. Mas há espaço para brincadeiras visuais: em dado momento, um close num carro dá a impressão de que o para-choque está sorrindo, e a trilha musical lírica e bonita contrasta com a feiura das imagens e dos treze (!) assassinatos vistos no longa.

Um diálogo trocado entre o entomologista e o pescador, um homem quase selvagem, meio que resume a obra. O pesquisador diz que “quando se mata sem motivo, a pessoa se torna um monstro”, e falam um pouco sobre civilização. Essa é a essência do filme e desta visão particular de Mario Bava: em Banho de Sangue quase todos são monstros, cometendo assassinatos por motivos torpes e sombrios. E essa falta de civilização é ampla e irrestrita, como o final maluco parece indicar – nesse sentido, o filme dialoga com o trabalho final de Bava para o cinema, o poderoso e também niilista Cães Raivosos (1974). Ao fazer Banho de Sangue, o cineasta italiano deu ao mundo uma base para incontáveis histórias de assassinatos e também criou uma nova forma de retratar a morte nas telas. Porém, por possuir essa visão satírica e sem enfeites da humanidade, seu filme acaba sendo mais especial e interessante que muitos dos que o sucederam. Há uma visão artística aqui, algo que os Sexta-Feira 13 e similares em geral não possuem: a visão de alguém capaz de ser reconhecido e admirado como um verdadeiro artista do cinema do século XX. Felizmente, cada vez mais pessoas estão reconhecendo o nome de Bava hoje em dia.