O escritor Ariano Suassuna morreu na tarde dessa quarta-feira (23), mas a riqueza multicultural que ele trouxe à literatura permanece em suas obras e em sua indireta contribuição ao audiovisual. Sua mais célebre colaboração ainda é a minissérie/filme “O auto da compadecida” (1999), mas o cinema e, principalmente, a televisão souberam aproveitar os personagens cativantes, as tramas elaboradas, mas populares, e a brasilidade fora do eixo Rio-São Paulo que Ariano imprimiu em suas obras literárias eventualmente adaptadas para as telas.

Voltando no tempo

30 anos antes do “O Auto da compadecida” que a geração atual conhece, “A Compadecida” trazia o universo de Suassuna para o cinema. Dirigido por George Jonas, o filme marca a primeira contribuição do escritor em um roteiro baseado numa obra sua. Armando Bógus e Antônio Fagundes interpratam a dupla protagonista Chico e João Grilo, em elenco que ainda trazia Regina Duarte, Felipe Carone e Ary Toledo. Em pleno 1969, as críticas contra a política, a desigualdade social e à igreja, salpicadas de maneira astuta tanto no filme como na peça que lhe deu origem, foram alvo de censura. Longe de ser um sucesso, “A compadecida” representa hoje apenas uma curiosidade cinematográfica por conta da presença de um jovem Antonio Fagundes e por ser a primeira das adaptações de Suassuna para o universo audiovisual.

Mais curiosa é a adaptação do mais famoso texto de Suassuna pela trupe de comediantes “Os Trapalhões”. Didi, Dedé, Mussum e Zacarias estrelaram “Os Trapalhões e o Auto da Compadecida” em 1987, que também tinha Raul Cortez, Betty Goffman e Cláudia Jimenez no elenco. A união inusitada resultou em sucesso de público, com mais de 2 milhões de espectadores e comercialização do filme no exterior. Até hoje, esse é considerado um dos melhores filmes dos Trapalhões, além de ser bastante fiel ao texto original de Suassuna.

Globo, Suassuna e qualidade: tudo a ver

Um outro texto de Ariano Suassuna chegou ao grande público, dessa vez pela apenas pela TV. Trata-se de “A farsa da boa preguiça”, peça teatral escrita em 1960 e adaptada para um especial da Rede Globo em 1995. Nela acompanhamos as desventuras do poeta Joaquim Simão (Antônio Nóbrega) e sua esposa Nevinha (Patrícia França), vítimas das armações de um casal de poderosos, Aderaldo (Ary Fontoura) e Clarabela (Marieta Severo). A união de influências eruditas, crítica social e humor veio novamente à tona, resultando num correto especial televisivo apoiado por um elenco de qualidade.

Com “O auto da compadecida”, minissérie dirigida por Guel Arraes em 1999, Ariano Suassuna alcançou um público que, em sua maioria, nada sabia sobre a peça teatral que ele escrevera em 1955. O escritor paraibano aprovou a adição no “Auto” de situações paralelas de outras duas peças suas, “O Santo e a Porca” e “Torturas de um Coração”.

Exibida na Rede Globo, a série logo gerou uma versão para o cinema, com texto adaptado por Suassuna. A direção acertada de Arraes ao administrar o gosto popular e a toda a inteligência e agilidade da peça do autor contaram ainda com as atuações inspiradas de Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Marco Nanini, Fernanda Montenegro, Denise Fraga, Lima Duarte, Rogério Cardoso e Diogo Vilela.

Com “O Auto da Compadecida”, o “cinema pipoca nacional” nunca viveu um momento tão ideal. O público gostou, a crítica gostou, a Globo ganhou dinheiro, a equipe ganhou prêmios e todos ficaram felizes com razão de ser. A dupla João Grilo e Chicó entrou para o imaginário popular como uma representação de um Brasil que se fez invisível por muito tempo, na tela grande ou na pequena: o do povo pobre e humilde que carrega um bom coração, apesar das artimanhas estapafúrdias e muitas vezes cômicas que utiliza para enfrentar as adversidades. O Nordeste, quase sempre representado a partir de um amálgama de estereótipos, ganhou contornos mais tridimensionais nessas telas, ainda que o fantástico desse o tom da trama.

Anos depois do lançamento de “O Auto da Compadecida”, o nome Ariano Suassuna parecia garantir duas coisas: para os realizadores, um texto base de qualidade, com potencial tanto para experimentalismos como para sucesso comercial; para o público, algo que seria gostoso de assistir. Com esse pensamento, a Globo lançou a microssérie “A Pedra do Reino” (2007) em comemoração aos 80 anos de Suassuna. Adaptada por Luis Alberto de Abreu, Bráulio Tavares e Luiz Fernando Carvalho, ela também seguiu os passos de sua antecessora audiovisual ao ir da TV para o cinema e por ser adaptação de um livro, “O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”.

O sucesso com o público, no entanto, não veio, mesmo com a presença ativa de Suassuna como colaborador do texto televisivo. As críticas foram positivas, mas a audiência na TV apontava um verdadeiro fracasso, que nem mesmo a exibição da minissérie na íntegra nos cinemas, a presença de Irandhir Santos como protagonista ou todo o projeto transmedia elaborado para “A pedra…” contornaram.

E agora, pra onde vai?

Não há informações sobre projetos de filmes ou minisséries trazendo mais adaptações da obra de Suassuna tão cedo. Porém, a tendência (mórbida) após o falecimento do escritor é que seu trabalho seja alvo de cada vez mais atenção, facilitando o processo das adaptações. Não seria nada mal trocar algumas das comédias brasileiras atuais por um texto divertidíssimo, crítico e afiado como o do paraibano, não?