Para qualquer cinéfilo que se preze, o cineasta sueco Ingmar Bergman merece ser reverenciado como um deus: um dos maiores gênios da sétima arte, talvez o maior deles, criador de obras que não envelhecem e dissecam a alma humana, ora explorando grandes conceitos filosóficos e existencialistas, ora aspectos mais triviais da vida como relacionamentos entre casais e entre pais e filhos. Seus filmes emocionam, nos deixam em choque, às vezes nos agridem, às vezes nos fornecem esperança, outras vezes nos deixam refletindo sobre o vazio da vida. Bergman recebeu merecidamente todos os grandes prêmios do cinema e sua obra pode até ser preservada e mostrada para uma civilização alienígena, caso eles um dia façam contato com a Terra: os ETs teriam plena consciência do que é ser humano, em tudo que isso implica, caso vissem o conjunto da obra do cineasta.

O que Bergman fez é eterno e merece ser visto assim… Mas o maior mérito do extraordinário documentário Bergman 100 Anos da cineasta Jane Magnusson é nos mostrar, além do deus do cinema, do teatro e das artes, um pouco do homem. E o retrato do homem, muitas vezes, não é lisonjeiro. Qualquer um que já tenha pesquisado um pouco sobre Bergman e sua obra tem consciência de que ele era uma pessoa difícil – não poderia ser de outro jeito, como fica claro ao se assistir a seus filmes. Mas o documentário acrescenta novas perspectivas…

O filme é centrado no ano de 1957, ano da virada da carreira e da vida de Bergman. Foi quando ele lançou duas bombas atômicas no mundo do cinema: seus clássicos O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, o primeiro no início do ano e o segundo no final. Entre os filmes, ele dirigiu várias peças de teatro, fez programas de rádio e dirigiu um filme para a TV. Tudo isso enquanto enfrentava problemas de saúde – uma forte úlcera estomacal – e tinha casos com suas atrizes. Na montagem, Magnusson alterna entre os fatos daquele ano com eventos do passado e do futuro de Bergman, criando de maneira bastante fluida um painel abrangente da vida e da carreira do gênio.

Contribui para esse painel o amplo trabalho de pesquisa do filme, que nos mostra notas biográficas dos cadernos do próprio Bergman, velhas entrevistas – algumas disponíveis no YouTube, caso o espectador deseje conferi-las – e até cenas de bastidores dos dois filmes de 1957 e de alguns outros da carreira do cineasta. É fascinante ver, por exemplo, o quanto a precisão e a inteligência de Bergman foram importantes para criar a atmosfera da Idade Média em O Sétimo Selo, quando percebemos graças às imagens de bastidores que o filme de pequeno orçamento foi gravado perto da cidade e se a câmera se movesse um pouco para os lados, focalizaria um prédio bem moderno…

Os depoimentos de atores e profissionais que trabalharam com Bergman também são importantíssimos para compor esse painel. Duas das suas maiores atrizes/musas participam do filme, Gunnel Lindblom e Liv Ulmann – esta última é responsável, como não poderia deixar de ser, pelo momento mais emotivo do documentário. Atores que trabalharam com Bergman no teatro – vale lembrar que a partir dos anos 1980, após sua obra-prima Fanny & Alexander (1982), o diretor voltou suas atenções para o teatro e a TV – também falam, e embora todos sempre ressaltem a genialidade do diretor teatral, nem sempre têm coisas boas a dizer sobre o ser humano Bergman.

Os depoimentos e o trabalho de pesquisa do documentário são responsáveis por estabelecer na mente do espectador o retrato do artista, tanto quando jovem quanto na velhice. Bergman emerge como um sujeito completamente fixado em seu mundo e em seu trabalho, à custa dos seus relacionamentos e até do seu contato com a realidade, que para ele parecia relativamente incompreensível – só isto para explicar a sua controversa simpatia pelo nazismo durante a juventude, um capítulo de sua vida ainda não muito abordado e que o documentário faz questão de explicitar. Bergman teve vários filhos, mas foi um pai ausente para eles e admitia isso; teve várias esposas, mas também se envolveu com quase todas as suas atrizes e morreu só. Era irascível no set de filmagem ou no palco, brigou com muita gente e sabia exercer seu poder de forma implacável.

Ainda assim, apesar de tudo isso (ou por causa disso?), criou um conjunto da obra dos mais fascinantes da história da arte em geral, não apenas do cinema. Nas mãos dele, o cinema, esta forma de arte tão jovem e popular, alcançou a profundidade e o patamar da literatura, por exemplo. Vivemos numa era em que precisamos muitas vezes repensar a nossa relação com a arte e os artistas que a criam. Muitas vezes, a tendência é querer jogar na lata do lixo a obra de alguém quando descobrimos que o artista é, ou foi, com o perdão do termo, um filho da puta. Bergman 100 Anos não fornece uma resposta definitiva para esse dilema, mas, na verdade, não é esta a sua função. O que o documentário de Jane Magnusson faz é nos convidar a nos maravilharmos e refletirmos sobre a questão, a incrível complexidade humana e a arte, muitas vezes superlativa, criada por indivíduos fascinantes e complicados.

No caso de Ingmar Bergman, a arte é o artista, o deus é o homem, e é isso que alimenta seus filmes.