Aberto a inúmeras interpretações, “O Rosto” é, sem dúvida, um dos trabalhos mais heterogêneos de Ingmar Bergman. Flutuando por mais de um gênero, a dita comédia dramática tenta equilibrar a erupção criativa da narrativa, sem realmente harmonizar seu propósito. Vencedor de três prêmios no Festival de Veneza de 1959, entre eles o prêmio especial do júri, o filme intenta reproduzir uma instigante alegoria da condição de artista, e do próprio Bergman, entretanto a trama parece nunca alcançar sua força.

No século 19, o mágico Albert Emanuel Vogler (Max von Sydow) e sua trupe formada por sua esposa, disfarçada do pupilo Mr. Aman (Ingrid Thulin), o esperto mestre de cerimônias, Tubal (Åke Fridell), e a experiente vovó Vogler (Naima Wifstrand), seguem a caminho de Stockholm quando o grupo parado pela polícia local é escoltado até casa do Cônsul Egerman (Erland Josephson). No local, os atores são submetidos a um interrogatório vexatório perante o Chefe de Polícia (Toivo Pawlo), o Dr. Vérgerus (Gunnar Björnstrand) e o Cônsul. Seguros charlatanice de Vogler, as autoridades exigem uma apresentação do mágico. No entanto, as coisas não seguem como o planejado para ambos os lados.

Bergman diversas vezes demonstrou o apreço pelo fantástico em suas obras. Esse elemento associado ao ambiente misterioso dos thrillers parece instigar o diretor de alguma forma. “O Rosto” é possivelmente, a primeira tentativa do cineasta, antes de “A Hora do Lobo”, em colocar o pé no universo do horror. Ainda que esse elemento esteja presente em “O Sétimo Selo” – embora também um meio dramático – é aqui que a intenção do gênero se faz pungente. Oscilando entre o drama, o cômico e o suspense, “O Rosto” coloca o espectador diante de uma infinidade de possibilidades e sensações, que talvez esconda sua essência. Talvez esse seja o maior problema com o filme. A transição pouco fluida entre os gêneros na sequência, quebra o clima das cenas. A criação de tensão que deve ter seu alívio para gerar o clímax, funciona como um banho de água fria. Não parece existir correlação entre os elementos. Infelizmente, a interação com a atmosfera do filme é prejudicada.

No entanto, a simbologia criada por Bergman floresce na narrativo. O cineasta revelou no seu livro Imagens, que o roteiro se trata do retrato das suas experiências no período sete anos em que dirigiu o Teatro Municipal de Malmö. O sueco delineou os paralelos entre sua vida e a arte, sua condição como artista e as diversas faces do ofício. O público, consumidor da arte, é representado no Cônsul Egerman e sua esposa, entusiasmados, porém impositores. O Chefe de Polícia representa a crítica especializada, constantemente afiada. Curiosamente, Bergman revelou que o arrogante Dr. Vérgerus é uma forma de vingança pessoal contra o crítico Harry Schein, marido de Thulin na época. Por fim, o ardiloso Tubal é o próprio Bergman, o diretor. Como ele mesmo definiu, é o “vendedor da arte”, o constante negociador das suas ideias. O sueco elabora a vida do artista como uma fraude, e naquilo que ele mesmo disse “sofremos a ilusão de que somos atraentes quando estamos mascarados”.

Entretanto, a profusão de camadas permite mais de uma acepção. Não só um reflexo da condição de artista, essa realidade concebida por Bergman, mas o por trás das cortinas que o público não tolera. O diretor, também, provoca uma discussão interessante sobre o empate histórico entre ciência e o sobrenatural. Os personagens se dividem nos dois polos, constantemente permeando uns nos outros. O sobre-humano é chacota diante da racionalidade da ciência, mas essa se vê coagida quando confrontada pelo inexplicável. Conflitos esses do próprio Bergman, perpetuamente atormentado pela fé e ceticismo.

O mestre sueco tece com originalidade sua visão, ainda assim o elenco é o maior destaque. A figura andrógina de Ingrid Thulin transcende a mulher. Max Von Sydow repele qualquer necessidade de palavras. Já Naima Wifstrand, esbanjando domínio, protagoniza uma das melhores cenas do filme: o close-up na senhora Vogler cantando para uma das criadas. Performances perfeitamente potencializadas pela cinematografia de Gunnar Fischer, que como de costume entrega um trabalho competente. Como seus personagens, Bergman cria um jogo de disfarces para expor sua relação intima com arte, porém, a passagem dissonante dos climas, a mistura falha dos gêneros, impossibilidade a melhor apreciação da ideia e da obra como um todo.


O OLHO DO DIABO   

“A castidade de uma jovem é um terçol no olho do diabo”, o provérbio irlandês que abre o filme, além de inventando por Ingmar Bergman, baseia o enredo da curiosa comédia erótica, como muitos definem, “O Olho do Diabo”. O longa lançando entre dramas complexos como “No Limiar da Vida” e “A Fonte Donzela”, aparece deslocado em uma filmografia gradualmente mais densa. Ainda que não tão fraco quanto o televisivo “A Mulher Veneziana”, também não guarda a espontaneidade de “Sorrisos de uma Noite de Amor”. O encontro entre Don Juan e o Diabo acometido por terçol, releva um Bergman entregue ao jogo, mas que aqui não consegue triunfar.

Fruto de um acordo feito com o produtor Carl Anders Dymling. Na época, Bergman queria dirigir um dos seus clássicos posteriores, “A Fonte da Donzela”, enquanto Carl detestava a ideia, insistia na produção de uma comédia baseada na peça de rádio Don Juan Returns do dinamarquês Oluf Bang, por sua vez odiada pelo cineasta. Ambos cederam, e os dois filmes foram realizados, um não tão significativo quanto o outro.

O Diabo sofrendo de um terçol no olho direito, envia do inferno para a terra o grande Don Juan, com o intuito de acabar com a causa da sua mazela, a virgindade intacta da bela Britt-Marie, filha de um vigário. De volta a vida, o conquistador, ao lado do seu assistente Pablo, tenta seduzir a jovem, que prestes a se casar, mantém -se inatingível as investidas do homem. Tudo começa a ruir quando o sedutor começa a se apaixonar pela garota. Infeliz, Don Juan retorna ao inferno sem sucesso.

Divido em três atos pontuados pelo narrador presente na tela, O curioso plot de “O Olho do Diabo” demonstra bem o frescor da filmografia de Ingmar Bergman, notadamente reconhecido pelos seus dramas. A longa evoca bem a irreverência típica do diretor sueco para explicitar os absurdos da natureza humana, entretanto distante daquilo que o diretor é conhecido por. A ausência de uma construção potente, capaz de extrair o máximo da originalidade do conceito, coloca o trabalho apenas como mais um para conta de Ingmar Bergman.

Infelizmente, o roteiro desperta mais interesse no papel do que sua execução. Difícil apontar exatamente o que impede o êxito de mais um trabalho cômico feito por Bergman. A verdade é que o filme não gera nada além de tédio. Não é criado uma atmosfera diferenciada para seus cenários ou a expectativa no espectador para a resolução entre o par de protagonistas. Bibi Andersson, sim, mantém o espírito jovial das suas atuações no período. Por outro lado, o personagem de Jarl Kulle aparece a todo momento apático, sem as características da clássica figura que interpreta. Talvez Don Juan tenha perdido seu charme. O personagem mais interessante é o pai da garota, o único que surpreende de alguma forma.

Sem sucesso em seduzir a bela virgem, tampouco a audiência, “O Olho do Diabo” estanca no meio do caminho. É possível que o contragosto de Bergman em dirigir o filme tenha atrapalhado o desenvolvimento, a certeza é que falta muito para a obra alcançar seu autor. Ainda que as incursões do cineasta no gênero nunca tenham sido para o riso livre, as ótimas doses de acidez e epifanias sobre as obscuridades da existência fizeram seus títulos. “O Olho do Diabo” não vive para além da sua intrigante premissa. Bergman desperdiçou uma ótima oportunidade para usar e abusar de uma das suas maiores qualidades: imaginação.