Eu entendo que a Netflix invista pesado na divulgação das suas séries, principalmente aquelas com um apelo direcionado ao público jovem – seu principal consumidor – como é o caso das recentes Você, The Umbrella Academy e Sex Education, mas seria ótimo a plataforma separar um percentual do seu investimento de divulgação para promover séries dramáticas de ótima qualidade fora deste nicho de público. Com certeza, você já deve ter passado pelo catálogo de séries da plataforma e visto Black Earth Rising sem dar à devida importância a minissérie britânica, produzida em parceria entre a rede BBC e a Netflix.

Por isso, esta crítica tem como principal objetivo abrir seus olhos e estimular você a correr para frente da plataforma para assistir a ela: Black Earth Rising é uma minissérie instigante, por combinar política, investigação e drama para abordar, com extrema relevância, um fato histórico geralmente esquecido pelo cinema e pela televisão que é o genocídio de Ruanda na década de 90, considerada uma das piores tragédias da humanidade, que culminou na morte de quase um milhão de pessoas devido a uma guerra civil sangrenta criada pela rivalidade de duas etnias, a tutsis e a hutus.

Black Earth Rising é o tipo de série televisiva boa para maratonar: é muito bem dirigida; apresenta um elenco consistente; possui ótimos diálogos; um conteúdo que apesar de pouco lembrado pela indústria do entretenimento do cinema e da televisão é bem relevante em 2019 – o ano na qual se completa 25 anos da barbárie – por proporcionar reflexões pertinentes não apenas sobre o genocídio no continente africano como também entender as questões econômicas, sociais e religiosas que cercam a tragédia. A minissérie não busca apenas detalhar ou descrever os acontecimentos e seus sintomas, mas sim mergulhar no entendimento das causas e razões que provocaram a situação, sempre fazendo bom uso daquela narrativa cínica que os ótimos produtos britânicos tendem a oferecer. Abaixo, seguem os motivos pelos quais você precisa conhecê-la.


As feridas éticas do Genocídio

A minissérie que se passa no Reino Unido, explora também os cenários da Europa, África e EUA para contar a história de Kate Ashby (Michaela Coel) sobrevivente do genocídio de Ruanda, resgatada ainda criança e adotada por Eve Ashby (Herriet Walter), uma promotora britânica que trabalha com direito penal internacional. Adulta, Kate trabalha para Michael Ennis (John Goodman) como investigadora jurídica no Reino Unido. Os dois juntos com Eve assumem um caso no Tribunal Internacional Criminal que envolve o terrível genocídio de Ruanda. O caso mexerá com os bastidores do poder dos mais diversos grupos políticos que participaram diretamente ou indiretamente da tragédia.

Em Black Earth Rising, os dramas que a história abriga (e não sou poucos), revelam o que há de melhor e pior da condição humana. A série coloca o dedo na ferida em vários momentos ao explorar as feridas éticas do genocídio decorrentes das diferenças entre classes sociais e que culminou na relação hipócrita dos colonizadores – Bélgica e França – e nas suas relações paternalistas com as ex-colônias. A série também mostra a omissão dos tribunais internacionais de justiça e as instituições religiosas em lidar com o massacre e o pós-conflito deste, assim como discutir as intenções meramente particulares dos governos e políticos, que colocam o povo sempre a sombra das suas necessidades pessoais, pois estão mais interessados em satisfazer as necessidades econômicas das multinacionais para assim lucrarem mais, colocando o bem estar coletivo em segundo plano – a tragédia nacional de Brumadinho só é mais um caso entre tantos outros mundos afora e que ajuda a comprovar a tese. Black Earth Rising não deixa ninguém indiferente e em nenhum momento procura adoçar esta ficção ao público.

Uma narrativa dramática envolta em mistérios e simbolismos

Caso você ache qualquer série voltada para a história um porre, não se preocupe. A minissérie britânica em seus 8 capítulos, também trabalha com uma narrativa envolvente que discute dilemas políticos, centrados no mistério e suspense. Se no mundo de hoje vivemos um momento de grandes mudanças políticas que assustam, a partir de escândalos, manipulações, corrupção, perseguições, jogos de poder e ambição, Black Earth Rising traduz estas inquietações dentro de um quebra-cabeça investigativo, onde tudo se encaixará perfeitamente no último episódio. Não faltam assassinatos, conspirações, suicídios e envenenamentos como situações para encobrir as ameaças ao poder.

Neste sentido, a série apesar da complexidade da trama política, abrange uma narrativa mais acessível que dialoga com entretenimentos clássicos e populares da Tv e do cinema como House of Cards (bastidores da política), Arquivo X (as conspirações governamentais) e Todos os Homens do Presidente (o processo investigatório). Black Earth também constrói de forma sólida o seu campo dramático ao criar a jornada emocional de Kate em busca da sua própria identidade. Ao tentar reconstruir seu passado, obter resposta e se reconciliar com ele, a série cria um eixo-emocional simbólico entre Kate e a investigação criminal sobre o genocídio, pois a busca pela justiça em relação à tragédia de um povo é a mesma busca pela verdade de Kate para a reconstrução do seu passado através das suas próprias memórias.

É curioso como esta busca pela identidade, verdade e justiça que norteia a dramaticidade da série, também é estendida aos demais personagens que sempre aparecem com problemas físicos (doenças), indicando que os anos de omissão e ocultação dos fatos em relação ao genocídio trazem um peso emocional enorme que refletem na “consciência culpada” que cada um dos envolvidos carrega. Se preparem para verem um grande número de personagens vomitando em cena como se estivessem expurgando ou regurgitando seus medos, dores e angústias.


Encenação e elenco em sintonia

A narrativa consistente da série não teria força se não fosse também o belíssimo trabalho da equipe técnica. Se os oito capítulos da série exigem atenção, eles são narrados de forma rígida – cada episódio tem duração metódica de 59 minutos, revelando o trabalho exímio da montagem -, sem concessões e que revelam o ótimo trabalho do showrunner Hugo Blick, o coringa da série, que não apenas dirige e escreve sozinho todos os episódios, como ainda interpreta um dos personagens secundários da trama (um assustador advogado).

Blick mostra um rigor estético impressionante, ao compor com talento um thriller de suspense sem remorsos, além de explorar o drama emocional sempre de forma inventiva como quando utiliza animações de traços negros desenhadas à mão em alguns momentos da série para retratar os flashbacks que ajudam a reconstruir o passado de memórias de Kate e de outros personagens. Inclusive, Blick cria uma das cenas mais intensas da série, quando coloca Kate de volta a Ruanda para visitar uma igreja onde mais de 50 mil tutsis foram mortos. Essa emoção ganha mais força com o ótimo repertório musical que utiliza Leonard Cohen (a música tema dos créditos), Lou Reed e Nina Simone.

O realizador conta também com um elenco inspirado, composto na maioria por atores desconhecidos do circuito comercial (que defendem com louvor seus personagens), com exceção do sempre ótimo John Goodman. Se é sempre um prazer ver o veterano ator dando um show de interpretação – a segurança que ele estabelece os diálogos de Michael é impressionante – deve-se aplaudir também a ótima Michaela Coel, atriz negra extremamente versátil, que até então tinha ganhado destaque na série de comédia britânica Chewing Gum (também disponível na Netflix). Em Black, Michaela mostra nuances dramáticas até então desconhecidas, com uma gama impressionante de emoções da sua Kate que é difícil não se questionar o que falta para Hollywood “descobrir” a moça.


Por fim, um drama sem complexos ou maniqueísmos

Foi curioso assistir Black Earth Rising na semana seguinte da vitória de Green Book no Oscar. Tanto o filme vencedor do Oscar quanto a minissérie britânica tem realizadores brancos comandando obras que abordam o universo negro. Enquanto Green Book cai no maniqueísmo de fazer um filme “negro” de brancos para brancos, a série da Netflix/BBC foge deste complexo. Blick, o cara ocidental, com jeito de colonizador branco – por cima britânico – se revela o cara certo para contar esta história, que foge de qualquer maniqueísmo que um enredo deste pode apresentar.

Na verdade em Black Earth Rising, Blick entende que não é uma história de brancos contra negros ou de negros e brancos e sim as camadas cinza da natureza humana que a história esconde, independente da cor. São seres humanos contra seres humanos a serviço da ganância e da ambição em busca de uma causa. Os líderes políticos brancos desejam o mesmo que os líderes negros: o poder, que impulsiona o individualismo e a mesquinhez humana. Por isso, o showrunner evita lições de morais, e mostra que os heróis e vilões estão dos lados da moeda.

É verdade que a minissérie tem suas falhas. Blick muitas vezes despeja um número de grande de informações como se achasse que o seu público é expert no assunto. Ser um pouquinho mais didático não faria mal. Outro aspecto são as idas e vindas repetitivas da história – uma personagem é presa duas vezes em um pequeno espaço de tempo – que o roteiro cria além do excesso de subtramas que poderia ser reduzida para dar mais espaços às diversas temáticas principais da série. Um exemplo disso é o interesse romântico para Kate na parte final da série que nunca decola, pelo contrário, só atrapalha o ritmo da história.

Esses pormenores narrativos, não impedem de Black Earth Rising ser uma grande surpresa escondida dentro da grade da Netflix. Como um bom drama, a minissérie faz perguntas espinhosas, proporciona reflexões grandes e nunca deixa o debate se fechar por completo. É um tiro certeiro para questionarmos as fronteiras morais de como encaramos os crimes de guerra. Como uma boa partida de xadrez, Black Earth Rising dá um ótimo xeque-mate em nós espectadores.