Engenhosidade é um fator imprescindível ao cinema quando não se tem muitos recursos disponíveis para uma expressão artística que geralmente envolve custos consideráveis. No caso do longa-metragem maranhense experimental “Boi de lágrimas”, de Frederico Machado, esse foi o componente essencial. Embora o resultado seja um filme que não é isento de falhas, é o que garante que a obra seja mais que apenas uma curiosa página de uma ala do cinema nordestino não tão popular quanto, por exemplo, o pernambucano.

“Boi de lágrimas” está inserido num projeto mais amplo, chamado Filme Político, do qual fazem parte não só Machado, mas também os diretores Cristiano Burlan, Dellani Lima e Taciano Valerio Alves Da Silva. Por ser uma obra que utiliza o horror para propulsão do tratamento do tema, fica claro o empréstimo de alguns elementos de, por exemplo, Glauber Rocha, em especial, na fase mais alegórica de sua filmografia, e de David Lynch, cuja pegada art house é comumente usada para gerar incômodo e choque de uma maneira inesperada.

Simbolismos a favor da reflexão política

Diz que isso porque “Boi de lágrimas” apresenta simbolismos que dialogam com o Bumba Meu Boi maranhense. Temos, de cara, os personagens: um homem que toca num dos grupos folclóricos, e cuja filha, dançarina, envolve-se em manifestações políticas junto ao namorado; um amigo da família e sua esposa, grávida e em agonia pelas dores de um parto iminente, ficam na fronteira entre realidade e pesadelo, num quadro que se relaciona à própria narrativa cíclica de morte e renascimento do Bumba Meu Boi, permeado por influências da cultura europeia, indígena e africana.

Não por acaso é uma das mais populares canções dessa expressão cultural o que dá título ao filme, e justamente uma que abarca o sofrimento do animal que, de acordo com a narrativa do Bumba Meu Boi, vem a ser ressuscitado por vias mágicas. Nesse sentido, é emblemático que o filme comece com um longo preâmbulo de discursos políticos variados, que versam sobre a existência de um poder invisível, a necessidade de crença em uma luta por outra sociedade, assim como a necessidade de ação e revolução para não perecer e transformar o agora, e como uma não-ação representa, metafórica ou literalmente, o verdadeiro apocalipse.

Em seguida, os créditos mostram, também lenta e incomodamente, o trajeto de formigas, quase que como um código que orienta a leve influência surrealista do filme. Os mesmos insetos que, num simbolismo diferente, são tão marcantes em “Um cão andaluz” (Un chien andalou, Luis Buñuel, 1927), aqui adquirem uma conotação mais dúbia: serão apenas seres alienados, trabalhando como peças de uma engrenagem instintivamente, ou representam os agentes de transformação quando organizados, ainda que diminutos?

Os paralelos entre os protestos políticos e cenas de Eisenstein também realizam um trabalho duplo: numa edição atenta, une os sentidos das demandas sociais do passado e do presente, mas também dribla as dificuldades técnicas de filmar uma manifestação nas ruas. Não chega a ser o momento mais inspirado do filme, mas serve possibilidades de leituras ao longa. Em tempos de tamanha polarização dos discursos, construções abertas como “Boi de lágrimas”, que não dão os sentidos de bandeja ao espectador, geram uma espécie de respiro para aqueles que acusam tão facilmente as narrativas de filme X ou Y de serem propagandas políticas.

Batido, pero no mucho

O fato é que, entre códigos do cinema experimental e de guerrilha, os quais podem até parecer batidos aos espectadores mais afeitos a cinema alternativo, a duração excessiva de “Boi de lágrimas” é o que acaba prejudicando parcialmente o filme. Se, por um lado, ele é inventivo em burlar os óbvios problemas gerados pelo fato do diretor ter apenas R$10 mil para a realização de um longa, por outro, ele estende determinadas situações de maneira a não gerar o efeito hipnótico de, digamos, um episódio 8 da terceira temporada de “Twin Peaks” (Twin Peaks – the return, 2017); pelo contrário, fica clara a tentativa de transformar um intrigante material para um curta em um longa-metragem.

Fosse outro contexto de produção, seria uma decisão a ser mais criticada. Porém, se pararmos para pensar no quão exótico ainda soa assistir a um longa-metragem maranhense, faz-se necessário demarcar uma posição quase moral de dar o braço a torcer para “Boi de lágrimas”, principalmente pelo fato de que há elementos redentores em sua concepção perceptíveis no filme enquanto produto final.

Temos, por exemplo, o trabalho de som que, ainda que repetitivo em sua insistência na tensa música instrumental, dá conta de expor a posição alienante dos personagens como indivíduos; as vozes que ouvimos são gritos de uma multidão massiva ou fruto de offs de reportagens, mediadas pela televisão, o que, até certo ponto, as despersonaliza.

O único momento em que de fato ouvimos um dos personagens falar é quando um deles canta a melancólica canção-título. Uma escolha relativamente simples, mas que consegue construir um sentido de apatia que reverbera a condição de boa parte da população quanto aos problemas sociais e políticos expressos no filme e na sociedade atual. O final, que perde em apoteose por conta das repetições, não nos entrega sentidos de fácil interpretação, deixando em aberto uma história do Brasil que, a bem da verdade, ainda está longe de encerrar seu ciclo atual.