Nessa espécie de subcategoria de filmes cultuados pelos cinéfilos, a impecabilidade da obra não é o mais importante, verdade seja dita. Ao contrário dos filmes que se tornam clássicos por seu uso inovador da linguagem cinematográfica ou por sua narrativa envolvente, o filme cult ganha essa alcunha por apelar ao público de maneira diversa. É o que acontece com “Bom Dia, Tristeza” (1958), apontado por muitos como uma obra menor na filmografia de Otto Preminger, responsável também pelo indiscutível clássico “Anatomia de um Crime” (1959).

“Bom Dia, Tristeza” construiu sua carreira de cult já a partir de sua fonte, o livro de mesmo nome da escritora Françoise Sagan. Escandaloso para a época, a então autora de 18 anos conta a história de Cecile (Jean Seberg), moça de 17 anos que vive entre a praia, festas e irresponsabilidade com o pai, Raymond (David Niven) no litoral da França. Eles têm a companhia de Elsa (Mylène Demongeot), jovem namorada de Raymond, que é jogada para escanteio após a chegada de Anne (Deborah Kerr), estilista e amiga de longa data do pai de Cecile, que muda toda a dinâmica da vida supérflua dos dois.

A (re)construção de um cult

Preminger traz em “Bom Dia, Tristeza” uma série de sutis reconstruções, começando pelo jogo com algumas convenções mais básicas da construção visual da narrativa. A primeira delas é o fato de que a narradora, Cecile, reconta sua história em flashbacks. Até aí, nada de novo. Porém, o tempo presente é apresentado em um profundo preto e branco, demarcando o estado de espírito da jovem, enquanto que o passado é de cores vibrantes, revertendo o padrão de esmaecer as cores para indicar o pretérito da narrativa fílmica. É o primeiro anúncio de que algo impactante se quebrou dentro da personagem, embora ainda não saibamos o quê.

A impressão de ruptura só se reforça ao longo do filme ao vermos as diferenças da Cecile sedutora e frívola no passado e no presente, mas sem mostrar satisfação nenhuma consigo mesma neste último, apesar do ritmo de sua vida ser basicamente o mesmo: estar com o pai, porém sempre livre, dentre festas e companhias não muito apropriadas.

Ao mesmo tempo, clichês como a extasiante cena de dança durante uma festa no litoral e alguns personagens estereotipados como o sul-americano Pablo (Walter Chiari) parecem querer brincar com a mente do espectador, fazendo-o acreditar que este será um filme leve, focado em mostrar como Cecile entra no jogo do pai ao ajudar a despistar Elsa para que Raymond se aproxime mais e mais da perfeita e inalcançável Anne.

A emblemática canção-título, interpretada no filme pela diva Juliette Gréco, é outro elemento que incrementa o caráter cult desse pequeno e imperfeito filme. Se o off de Seberg interrompe a canção por vezes com sua leitura quase robótica, a canção prepara o terreno para a apresentação dos conflitos da trama e a carrega de sentimento.

Das cores ao preto-e-branco

Até mesmo a preferência pelas cores azul, branco e vermelho surgem, a princípio, como clichês da representação americana do ensolarado litoral francês. Não por acaso, as cores são primordiais no figurino de Cecile e Raymond, que parecem extremamente coordenados no início dos flashbacks (ela usa azul, ele usa azul; ela usa listras, ele usa listras), para depois irem se distanciando na paleta. Curiosamente, as cores e formas do figurino de Cecile ganham aproximação com os de Anne, sua madrasta-rival, subentendendo a rivalidade delas na disputa pela atenção de um mesmo homem.

Aliás, a aparente frivolidade da protagonista Cecile é, aos poucos, substituída por matizes mais complexas. Ela surge leve, moderna e faceira como uma espécie de Audrey Hepburn mocinha e loira, mas a explosão de cores do verão francês é uma espécie de ironia para destacar como as ações inconsequentes de Cecile encontram sim consequências que a mente da jovem jamais esquecerá, criando a melancolia que acompanha seu despertar para a maturidade.

É emblemática então a relação dela com Raymond, o pai que nunca chama de pai, e com quem dança pela noite como quem dança com um amante. Também o incesto infiltra-se no universo de superfície doce e colorida de “Bom Dia, Tristeza”. Aí se entende melhor a preferência por retratar o presente em preto-e-branco. A rotina do duo Cecile-Raymond (sem a presença de Anne, o que só se explica ao final do filme) continua tão inconsequente quanto antes, mas a tragédia quebrou para sempre o espírito desse convívio, expondo também seus aspectos doentios.

Homem, o acessório feminino

Resumindo, é a partir do esmaecimento desses e outros clichês que Preminger preparou o terreno cult de “Bom Dia, Tristeza”. No entanto, ainda outro elemento chama a atenção ao ver o filme em perspectiva hoje. Trata-se da dinâmica das personagens femininas. As nuances de Cecile chamou a atenção de Jean-Luc Godard, diretor da Nouvelle Vague que, não por acaso, escalou Seberg para seu “Acossado” e mesmo apontou a personagem Patricia Franchini como uma continuidade de Cecile.

Independente, infantil, inconsequente e depois, marcada por conta disso, Cecile navega pelos perigos da noite com agilidade, fazendo tudo em função de si mesma e nada em função de um parceiro romântico. O pai, foco de ação dela, é mais um acessório que demarca seu poder que um objetivo final. Talvez por conta disso Preminger deixasse rolar solta a fanfarronice de Niven como Raymond, numa atuação bem canastrona. Ainda que ele seja o sedutor da trama, ele serve, em verdade, aos interesses das mulheres que o rodeiam.

Dessa maneira, Anne surge para desequilibrar o poder de Cecile sobre o pai ao afirmar o seu próprio. Ela traz mudanças impactantes ao instituir uma rotina familiar mais tradicional, na qual o pai instrui a filha a estudar para os exames finais da escola e se formar, ou deixar de lado o flerte com o vizinho, Phillipe (Geoffrey Horne). Cada uma a seu modo, Anne e Cecile buscam afirmação no mesmo espaço. Assim, Deborah Kerr atua também no sentido de quebrar sua imagem habitual de mulher predominantemente direcionada ao relacionamento amoroso, consolidada em filmes como “Tarde Demais para Esquecer” (1957) e mesmo “A um Passo da Eternidade” (1956).

A cena final de “Bom Dia, Tristeza” consolida todas essas rupturas apontadas em relação aos clichês, às suas mulheres e à maleabilidade da linguagem cinematográfica idealizada por Preminger. Sem mais detalhes para não soltar spoilers, mas a tal cena minimiza os vários problemas que o filme, apesar de cult, apresenta. Mas, como bem indicou o início deste texto, alguns filmes marcam não pela perfeição de sua condução, mas por reações que elementos bem específicos podem gerar. O imperfeito “Bom Dia, Tristeza” pertence a esse time.