Entre os títulos de 1939, talvez “Carícia Fatal” fique perdido em meio a fitas como “…E o Vento Levou”, “O Mágico de Oz” e “No Tempo das Diligências”, que viraram modelos para seus respectivos gêneros e apontaram direções que o cinema seguiria nas décadas que viriam. Na carreira do diretor Lewis Milestone, esse é um filme que se destaca, mas que perde posições no ranking dos “mais conhecidos” do cineasta quando comparado a outras obras assinadas por ele, como “Sem Novidade no Front” e “O Grande Motim” – ainda que haja controvérsia sobre os créditos finais deste último, já que Marlon Brando e Carol Reed também dirigiram cenas do longa, mas apenas o nome de Milestone figura no expediente.
Adaptação de “Ratos e Homens”, de John Steinbeck, “Carícia Fatal” tem como pano de fundo a Grande Depressão pós-quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929. Quando o livro foi publicado, em 1937, e o filme foi às telas, em 1939, os Estados Unidos ainda viviam as consequências desse colapso econômico, com um cenário que só mudaria de forma significativa na década seguinte, durante a Segunda Guerra Mundial.
Nesse contexto, a história nos apresenta a Georgie Milton (Burgess Meredith) e Lennie Small (Lon Chaney Jr.), dois amigos que começam a trabalhar em um rancho na Califórnia enquanto alimentam o sonho de, um dia, terem o seu próprio lugar.
Opostos, porém semelhantes
Como muitas outras histórias apoiadas em duplas de amigos, cada personagem tem a sua particularidade. Georgie é responsável, inteligente e tem os meios para conseguir se virar em um mundo cruel como o dos trabalhadores daquela era. Já Lennie tem um atraso cognitivo que lhe torna, em teoria, vulnerável naquele ambiente. Dois opostos, mas com denominadores comuns.
Um desses denominadores é o instinto de sobrevivência, que vai de encontro com a inocência que existe não só no pueril Lennie, mas também em Georgie. Os dois trabalham arduamente e sofrem todos os tipos de abuso laboral, mas não jogam fora a ideia de, um dia, terem um rancho e não precisarem mais obedecer a ordens de outros.
Também transborda em “Carícia Fatal” (a propósito, que título péssimo!) o quão abandonados estavam aqueles personagens. Isso não se resume à dupla principal. Única personagem feminina da obra, Mae (Betty Field) é a esposa do filho do dono do rancho onde a dupla trabalha, e também é uma vítima. Assusta ver o quanto a obra se mantém atual no que diz respeito ao tratamento das mulheres: em dado momento, Mae se revolta com o marido que não lhe deixa falar com ninguém; em outro, ela confessa que se casou apenas para “sair de casa”. Interessante também notar que, se no livro, ela é apenas conhecida como a esposa de alguém, aqui ela ganha um nome.
Em uma sociedade ainda machista, não é difícil conhecer ou ouvir falar de mulheres como Mae, que embarcaram em um casamento sem amor apenas para não ficarem sozinhas. Perante a inocência de Lennie – de quem desperta o interesse -, ela se sente confortável para expor sua vulnerabilidade. O que acontece em seguida é desolador: em busca do amor e do afeto que não teve, ela vai de encontro a um fim trágico.
“Você é bobão, mas é tipo um cara legal, como um bebezão”
Essa escolha narrativa é discutível, já que mostra um “sacrifício” por parte da única mulher da história. Também há quem argumente que ela é tratada como culpada pelas suas mazelas. No entanto, Mae tem uma construção que instiga: para além de ser o saco de pancada ou a “smurfette” da trama, ela se impõe. Ao mesmo tempo, sua construção lhe permite, também, a exposição da melancolia que lhe toma. Não é alguém implorando para que o público a ame, mas sim uma mulher complexa, ainda que surja como coadjuvante em uma história que não é a dela. A performance de Betty Field caminha entre o desespero de alguém estagnado em uma vida que não quer e o sentimento de quem tem, no fundo, a esperança de sair daquele cenário.
Para além dos temas colocados em pauta, “Carícia Fatal” é um filme que se apoia muito nos trabalhos de seus atores. A já citada Betty Field realmente faz uma criação memorável, mas é a dinâmica entre Burgess Meredith e Lon Chaney Jr. a responsável pelo êxito do longa.
Décadas antes de viver o treinador de Rocky Balboa, Meredith teve em “Carícia Fatal” a sua primeira grande chance no cinema. Mesmo com um nome já conhecido no teatro, o intérprete de Georgie enfrentou a desconfiança da indústria, que viu com surpresa a escolha de um “não astro do cinema” para o papel.
Seu companheiro de cena também não tinha muita experiência como protagonista no cinema, mas carregava o peso de ter um sobrenome e um nome que, ali, já eram icônicos. Filho do astro do cinema mudo Lon Chaney, Lon Chaney Jr. já conhecia Lennie e o texto de Steinbeck. Pouco tempo antes de fazer o teste para “Carícia Fatal”, ele havia interpretado o papel no teatro. Ainda assim, sua escolha para o filme também foi considerada arriscada, mas, após uma bateria de testes, Milestone apostou no talento de Chaney Jr., e isso se provou um grande acerto, já que o filme estabeleceu o ator na indústria e foi o pontapé para uma série de papeis em filmes de gênero na Universal, com destaque para “O Lobisomem” e participações subsequentes em outras obras como o mesmo personagem (de acordo com o IMDb, esse typecast foi motivado justamente pelo desempenho dele em ‘Carícia Fatal’).
Seria fácil Chaney Jr. pender para a caricatura, mas ele cria um tipo com várias camadas. A complexidade do personagem e da trama podem ser observadas na cena em que Lennie tem sua última interação com os cachorros do rancho, logo após a morte de Mae. Esse é um homem capaz de cometer o mais cruel dos atos e, logo em seguida, conferir aos animais o amor que a vida não lhe deu. A ameaça que ele representa ali é perfeitamente emoldurada pela direção de fotografia e principalmente pela trilha de Aaron Copland, que começa tensa e pontua o quanto aqueles animais são indefesos, mas logo perde a aura de suspense e fica mais suave quando Lennie mostra seu afeto pelos bichos.
Esse tom ameaçador se dissipa completamente quando vemos George e Lennie juntos novamente ao fim da história. O instinto protetor – ou seria o medo da solidão? – volta a acender no primeiro e o que temos é um momento de grande força dramática que culmina em um fim desolador. George apela para a inocência de Lennie e lhe faz crer, até o último segundo, na lealdade que, por muito tempo, escreveu as linhas da amizade dos dois. No fim das contas, foi liberdade pelo sacrifício ou sacrifício pela proteção?
A dubiedade do fim e a fuga das soluções fáceis que tanto agradam os poderosos de Hollywood fizeram desta adaptação comandada por Lewis Milestone um título que, ainda que não tão celebrado, merecedor de estar na mesma prateleira que seus outros “colegas” de 1939.