Muito se fala do papel social que a arte pode desempenhar na sociedade, que vai muito além de uma apreciação esporádica de um material que desperta diferentes sensações, ou possíveis mensagens e ensinamentos, como é muitas vezes rotulada de forma professoral e reducionista.

Falo da arte transformadora, com potencial de mudar hábitos e mentalidades, que serve como porta de entrada para descobrir um mundo completamente novo.

O cinema, claro, é uma dessas portas de entrada, tendo uma série de exemplos em diferentes épocas e lugares onde pessoas, através de envolvimento com produções cinematográficas, mudaram de vida e dedicaram-se a seguir uma carreira artística na tradução literal do termo.

Neste ano, temos mais um exemplo disso com o lançamento de César Deve Morrer (filme que, para variar, não chegou aos cinemas de Manaus), dos veteranos diretores italianos Paolo e Vittorio Taviani, que reconta a peça de Shakespeare, Júlio César, em uma prisão de segurança máxima, sendo interpretada pelos detentos.

Como se pode notar, a metalinguagem possui papel determinante no longa. Em determinados momentos, fica difícil saber o que é o que, pois trata-se de uma peça dentro de um documentário que está dentro de um filme, resultando em problemas, visto que os diretores, em determinados momentos, forçam a barra querendo dar a entender que certos acontecimentos que passam na tela sejam “reais”, quando claramente foram interpretados. Isso acontece, por exemplo, em dois belos momentos do filme, quando o ator que interpreta Brutus, Salvatore Striano, interrompe um ensaio por uma fala de seu personagem lembrar de um amigo de fora da prisão, e quando Giovanni Arcuri, intérprete de Júlio César, aproveita-se de uma cena para falar verdades a um dos atores. Somando esses momentos à cena em que vemos guardas da prisão debochando dos detentos, o trabalho meio que se enfraquece, pois dá brechas para que duvidemos de outras ocasiões que vendem a ideia de representarem uma emoção oriunda de seus intérpretes em vez de serem dos seus personagens.

Mesmo assim, o filme é recheado de qualidades. Por exemplo, pode-se citar a maneira inteligente e criativa como os diretores conseguiram fazer com que o material da peça casasse bem no cenário da prisão, criando momentos inusitados e verdadeiramente impactantes, devido ao fato de Roma ter sido trocada por pavilhões e pátios inóspitos.

Além disso, a fotografia preto e branca possui um papel interessante na trama, tornando os acontecimentos mais frios e impessoais, agregando uma crueza àquelas situações, mostrando que apesar de estarem realizando algo belo (uma peça de teatro) aqueles homens ainda se encontram em uma prisão, cumprindo longas penas pelos graves crimes que cometeram fora dali. E é interessante que essa característica da fotografia inicie-se na sequência de apresentação dos personagens, sendo que logo depois saberemos o motivo de suas prisões e o tamanho de suas penas, e que, quando estão no palco apresentando o trabalho as cores voltem, assim como também acontece na cena em que um dos presos observa um quadro que é a paisagem de uma bela praia.

Um outro fator que dá um tom bastante original ao filme são os atores, que justamente pelo fato de não serem profissionais, agregam uma naturalidade rara de se ver em um filme, somado ao fato de que os intérpretes de alguns personagens são nitidamente bastante talentosos. Os destaques ficam por conta de Giovanni Arcuri, que interpreta Júlio César, Cosimo Rega que interpreta Cássio, Antonio Frasca que interpreta Marco Antônio, e principalmente o intenso Salvatore Striano, dono da melhor atuação do filme, que é quem mergulha mais profundamente nos detalhes do seu personagem, Brutus, dissecando-o de maneira admiravelmente complexa.

Não é a toa que a melhor cena do filme é o discurso de Brutus seguido do de Marco Antônio, momento em que as atuações desses dois personagens chegam ao seus ápices, e ainda no qual a direção chama muito a atenção, quando faz com que os universos de Roma e da penitenciária tornem-se assustadoramente semelhantes.

É realmente uma pena que o fim nos frustre de maneira tão forte, pois nele descobrimos que vimos o final da história no início do filme, o que diminuiu fortemente o seu impacto no desfecho, além da fala final de um dos personagens que soa óbvia, piegas e subestima a inteligência do público.

Porém, deixando um pouco de lado certos pecados, César Deve Morrer é um filme que não assemelha-se muito com o cinema que vemos por aí, caminha por um universo interessante e próprio, e alcança um resultado com momentos verdadeiramente potentes, que por si só fazem com que este trabalho mereça toda (e quem sabe até mais) a atenção que recebeu.

NOTA: 7,5