Chocolate é uma espécie de filme “bipolar”. Esta característica não é no sentido pejorativo, mas pela emoção um tanto quanto ambivalente que sua estrutura narrativa proporciona ao espectador. Primeiramente, direciona este a momentos de leveza e felicidade plena na trajetória do protagonista, abraçando uma atmosfera simpática e popular em narrar de forma sensível uma história humana de superação. Porém, há um sentimento amargo que permeia todo o filme, desconstruindo a sensação real de euforia que nós tínhamos até então sobre ele, para injetar uma dose de melancolia que causa impactos profundos em nossa reflexão. Neste ponto, a película é uma verdadeira “tragicomédia” na embalagem de uma cinebiografia, um exemplar cada vez mais raro de se encontrar no cinema atual.

O ótimo Omar Sy é Rafael Padilla, um artista negro do início do século XX. Descendente de escravos e marginalizado no papel de uma aberração selvagem – papel comum dos negros na época – em um circo itinerante nos arredores da França, ele é abordado pelo decadente arlequim, George Footit (o impecável James Thiérrée, na vida real neto de Charles Chaplin) para fazer parte de um novo número que irá revolucionar a arte circense na Belle Époque parisiense. Juntos, a dupla ganha uma popularidade ascendente encontrando o grande estrelato. No picadeiro, Chocolate (nome artístico de Padilla) é uma espécie de bobo da corte, um de dublê de palhaço utilizado por Footit no espetáculo, passando por encenações humilhantes para satisfazer os delírios da burguesia. A medida que adquire a consciência social sobre sua situação, Rafael passa a se questionar de seus desejos e ambições.

Dirigido pelo francês descendente de família marroquina, Roschdy Zem, Chocolate evita cair nos maneirismos tradicionais de outras biografias e está mais interessado em surpreender por querer contar uma história humana de altos e baixos da vida. É aquele tipo de trabalho que apresenta logo de cara os personagens e utiliza o carisma de cada um, para encenar uma narrativa adorável e sensível que permite que cada vitória e superação dentro da odisseia dos palhaços, abra espaço para o público se divertir e sorrir. O primeiro ato do filme é praticamente construído neste tom mais leve e despojado de comédia, focado na popularidade da dupla Footit e Chocolate que se destaca visualmente por transformar a Belle Époque francesa em paletas extravagantes e coloridas a qual a elegante direção de arte reproduz na sua ambientação, uma França esteticamente virtuosa. Dentro deste ambiente de desfrutar das belezas oferecidas pela “art noveau”, Padilla não ambiciona ou deseja um mundo igualitário, apenas deseja ostentar, utilizando o que ganha em jogos e mulheres, sem se preocupar em analisar sua postura artística de forma crítica.

É a partir do segundo ato que Zem praticamente surpreende o público – uma bela rasteira inesperada – porque transformar o humor um tanto quanto ingênuo do filme em um símbolo de teor socialmente crítico em relação ao preconceito racial. É satisfatório acompanhar o crescimento emocional do protagonista frente as adversidades sociais e culturais da época, após ter a sua própria epifania – logo depois de ser preso por não portar documentação – que o ajuda a se conscientizar que o seu sucesso é decorrente  do seu papel de negro que sujeita-se as humilhações perante o branco europeu elitizado. Rafael tenta vencer o racismo do mundo etnocêntrico através da arte, elemento que ganha força na ótima sequência que o personagem resolver interpretar Othello de Shakespeare no teatro.

Chocolate

Dramaticamente neste ponto, o filme ganha um ótimo contorno dramático como denúncia do mundo etnocêntrico racista da Europa da época e da importância da consciência social de quem somos dentro da sociedade. Essas situações são muito bem ilustradas na dinâmica da própria dupla: Enquanto Footit representa a racionalidade europeia branca e sábia, Chocolate é a própria dimensão do prazer da vida e das emoções. Logo as atuações de Omar Sy e James Thiérrée embelezam a essência dos seus personagens. Depois de mostrar seu carisma em Samba (2015) e Intocáveis (2014), mais uma vez o ator negro mostra o talento habitual de traduzir a transparência emotiva de Padilla ao mesmo tempo que personifica sua fúria e insegurança frente a sua nova visão de mundo. Por sua vez, Thiérrée que já interpretou duas personalidades marcantes do humor no cinema (Buster Keaton e Rodolfo Valentino) através da sua postura contida e reservada cria um George complexo que vive entre a frieza racional e a melancolia, uma figura enigmática intransponível. Se Omar é a energia contagiante do filme em induzir a emoção, James é o responsável pelo ritmo e de manter o foco na narrativa.

É claro que algumas circunstâncias do roteiro enfraquecem um pouco a essência do trabalho. A principal delas é que o diretor jamais abre espaço para os extremos da vida da personalidade de ambos os personagens. De Rafael, jamais aprofunda os motivos sobre o alcoolismo e seu vício em apostas, enquanto de Footit, apesar da complexidade do seu personagem, não há espaço para criar um vínculo maior com ele, até porque falta um elo para entendermos suas ações, seja em relação a sua amizade com o amigo, seja na sua própria sexualidade. Para fechar, falta também uma conexão mais sólida e profunda para o cineasta delinear melhor a narrativa,  principalmente o choque entre a comédia e a postura crítica do trabalho.

No geral, Chocolate não deixa de ser uma cinebiografia inusitada pelo tom ora leve, ora melancólico e pessimista que retrata a arte na sociedade francesa etnocêntrica racista da época. Olhando o cenário político mundial em que os partidos extremistas de direita vêm ganhando força cada vez mais, podemos perceber que o racismo continua a ser uma ferida exposta que está muito longe de cicatrizar na sociedade contemporânea.