Houve um despertar. Você sentiu?”. É o que diz o vilão Snoke em “Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força”. Embora esse texto não seja sobre o último filme de J.J. Abrams, a frase é válida para descrever o estado da cultura de fã hoje em relação a como essa parcela importante do público encara a representação da diversidade no cinemão americano.

Mas para chegar nesse tal “despertar”, é preciso primeiro explicar o que exatamente é essa cultura, caso você ainda não tenha notado que ela é peça fundamental da máquina multimilionária que acompanha um cinema recheado de super-heróis e franquias.

Fandom, universos narrativos, publicidade e dinheiro, muito dinheiro!

O termo fandom (fan kingdom, ou reino dos fãs, em inglês) é o que diferencia os espectadores de cinema em dois grandes grupos. Enquanto que uma parte das pessoas dá uma olhada na programação do cinema, escolhe o que parece ser mais legal, assiste e vai para casa, outro grupo acompanha no decorrer de meses (e às vezes até anos) notícias sobre a produção de um filme específico, sedento por novidades e pelo fatídico dia em que terá a “honra” de assistir ao tal filme, que geralmente faz parte de uma franquia (vide o próprio Star Wars, filmes de super-heróis ou Harry Potter, por exemplo).

O consumidor comum pagou para ver o filme da mesma maneira que o fã. Mas depois de ver o filme, o fã quer muito mais: compra uma série de produtos ligados ao filme, debate com outros fãs sobre ele, escreve ensaios ou histórias utilizando o universo narrativo do filme (as chamadas fanfics), veste-se como seu personagem favorito em eventos especiais (ou seja, faz um cosplay), e, dependendo de seu tempo e disponibilidade, basicamente vive para o filme. Resumindo, esse fã e a cultura de fã da qual ele faz parte é uma verdadeira máquina de fazer dinheiro para estúdios e empresas de produtos licenciados.

Ao contrário do que se pode imaginar, esse segundo grupo está longe de ser pequeno. Não por acaso, grandes conglomerados como a Disney possuem em sua folha de pagamento um tipo no mínimo inusitado de profissional: o chamado “fanthropologist“, antropólogo especializado em desvelar quais os desejos, entendimentos das franquias e práticas de consumo dos fandoms para que essas informações ajudem a compor ações de comunicação junto ao público em geral. Um fanthropologist acompanha, por exemplo, o que é dito nas redes sociais sobre um novo trailer de filme de super-herói, que tipo de memes relativos a ele se popularizam na web, que tipo de textos os blogueiros estão escrevendo sobre o filme, dentre uma gama variada de outras atividades. Eles querem descobrir o que agrada e o que não agrada aos fãs.

Percebe-se aí um ponto de virada para os fandoms que, por si sós, já existem há umas boas décadas: eles deixam de ser uma subcultura marginalizada, de nerds que compartilham suas opiniões em zines de difícil acesso, e passam a ser importantes do ponto de vista comercial para a indústria de entretenimento. O fã paga, de bom grado, pelos produtos que saciam seu desejo de vivenciar a experiência de consumo, que é também uma experiência de adentrar no universo de uma narrativa que lhe agrada. Para quem não tinha se tocado ainda, é isso que explica porque as grandes livrarias têm aquela sessão de quadrinhos, porque você vai numa loja de departamentos e se depara com um jogo de cama do Capitão América, porque há uma caixa de Lego Star Wars que custa mais de R$ 600,00 na loja de brinquedos, e por aí vai…

E o que isso tem a ver com o ‘raio problematizador’?

Observe o contexto em que vivemos hoje. Hoje você acorda e provavelmente olha as horas em seu celular, para logo depois checar as redes sociais, mensagens dos amigos em algum aplicativo, e-mails do trabalho… E você ainda nem levantou da cama! Resumindo: estamos online o tempo todo, e temos o potencial de disseminarmos nossas opiniões sobre qualquer coisa o tempo todo. E assim como você, os fãs se aproveitam dessas ferramentas para debater sobre o objeto de suas afeições, surgindo aí opiniões as mais diversas possíveis.

Dessa maneira, assim como o cidadão médio espectador de Big Brother Brasil discutiu a eliminação de um candidato polêmico, os fãs estão discutindo como o mundo e, em especial, eles mesmos, encaram o que acontece no universo narrativo dos filmes, quadrinhos, séries e livros que eles curtem. É nesse bolo que entra o cinema.

Grosso modo, o cinema é uma narrativa, ou seja, um contar uma história. As narrativas não raro seguem modelos que se repetem, o que qualquer espectador pode notar ao assistir a filmes de um determinado gênero. No terror, por exemplo, há uma ameaça mortal, um herói, as vítimas que morrem pelo caminho. Já nos filmes de super-herói, temos uma pessoa capaz de feitos extraordinários, que luta contra um inimigo e supera seus limites a cada vitória. No entanto, o cinema não pode contar essas histórias sempre do mesmo jeito, ele precisa estar em sintonia com o contexto histórico e social de uma época para criar uma conexão com o público e se manter como arte e como produto de consumo.

Quando os fandoms expressam seus desejos e olhares sobre os filmes, eles acabam por influenciar a maneira como produtores, roteiristas e diretores direcionam essas obras. Aí entra uma característica interessante dos fandoms: o potencial de agregar pessoas com olhar plural sobre o mundo, uma vez que o fã eventualmente é visto como nerd, estranho ou divergente de alguma maneira perante as outras pessoas. Há vários exemplos disso, e não exatamente recentes. No fandom da série Jornada das Estrelas, por exemplo, havia um grupo de pessoas que se dedicavam a escrever fanfics sobre um relacionamento homoafetivo (que jamais existiu na série) entre os personagens principais, Capitão Kirk e Spock, isso entre os anos 1960-1970. Mais recentemente, o fandom de “Jogos Vorazes” debatia sobre como a protagonista Katniss foi transformada para o cinema, pois nos livros a personagem poderia ser considerada morena, e não caucasiana como a atriz que a interpretou, Jennifer Lawrence.

Ainda usando “Jogos Vorazes” como exemplo, o fandom foi essencial para que a franquia jamais optasse por dar ênfase no relacionamento amoroso que a personagem teria com um dos protagonistas masculinos. Se isso fosse feito, a crítica dos fãs seria implacável, pois embora os fãs também alimentem seus ships (diminutivo de relationship, ou torcida por um determinado casal da ficção), eles tinham noção de que os livros e os filmes são sobre Katniss, e não sobre com quem Katniss vai namorar. Esse olhar permeou a cultura como um todo, e a partir do sucesso da saga, muito se debateu sobre questões de empoderamento feminino de uma forma que realmente atingia as pessoas, para além do fandom. E assim as meninas de hoje podem crescer querendo ser princesas, uma Barbie ou… uma guerreira que vence os Jogos Vorazes.

Outro exemplo recente é o cult “Mad Max”, que trouxe um sopro de ar fresco aos filmes de aventura/ação com o formato narrativo de “Mad Max: Estrada da Fúria”. Enquanto alguns fãs reclamaram do destaque dado à personagem Furiosa (Charlize Theron), agregou-se um enorme fandom feminino (e feminista) ao filme, que ovacionou a complexidade da personagem e o tratamento do tema do filme, no qual mulheres eram tidas como escravas e parideiras para o vilão Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne). Furiosa não é o par romântico, não é um decote ou fenda de vestido que revela belas coxas: ela luta pelos seus num mundo de grandes adversidades. Parece exagero? Tente lembrar qual foi o último filme que você viu no qual uma personagem mulher faz isso. Nem precisa ser filme de ação ou aventura, tenta aí.

Retornando ao recente lançamento da franquia Star Wars, grande parte dos fãs vibrou quando foi anunciado que uma mulher (Daisy Ridley), um negro (John Boyega) e um latino (Oscar Isaac) seriam os protagonistas do novo episódio da saga. Aliás, não só os fãs, mas a imprensa em geral. Afinal de contas, estamos falando de uma franquia na qual, fora a Princesa Leia (Carrie Fisher), mulheres falam por exatos 1 minuto e 24 segundos em toda a trilogia original. É também uma franquia que teve, na trilogia original, um único negro, Lando Calrissian (Billy Dee Williams). Em “O Despertar da Força”, o nível de aceitação dos novos personagens foi tão alto que a Disney até atrasou o lançamento do Episódio VIII em alguns meses para poder realizar mudanças no roteiro e dar mais atenção a eles; ou seja, o público não apenas não morreu porque o elenco não é todo branco, como curtiu.


Em sua conta no Twitter, o ator negro John Boyega celebrou o menininho brasileiro que “se viu” no boneco do personagem Finn, de “Star Wars: O Despertar da Força”. Fãs também tiveram que protestar pela inserção da protagonista (!) Rey dentre os bonecos de uma outra marca de brinquedos.

Isso mostra transformações no mínimo interessantes na maneira como os fandoms têm conseguido subir à superfície da indústria de entretenimento a ponto de influenciar mudanças que o cinema reluta bastante em aceitar. Afinal de contas, até bem pouco tempo atrás tivemos o sucesso de bilheteria “Cinquenta Tons de Cinza”, livro transformado em filme e que foi escrito para ser originalmente uma fanfic de “Crepúsculo”. Partindo da visão do fandom do filme, vários ensaios já foram produzidos para descrever se as relações de poder entre os protagonistas do livro/filme implicam na manutenção da submissão da mulher, ou se na verdade o filme passa uma mensagem de empoderamento feminino ao mostrar uma mulher explorando sua sexualidade, ou se o filme reflete ou não as práticas do sadomasoquismo no mundo real… Enfim, são muitas as problematizações possíveis, problematizações essas divertidas, mas também relevantes por falarem sobre como os filmes impactam na sociedade.

Uma mudança que poderemos conferir com o lançamento de outro filme de super-herói, “Deadpool“, é como será a reação do grande público a um personagem assumidamente pansexual. Os fãs de quadrinhos já sabem muito bem que o anti-herói da Marvel basicamente flerta com qualquer coisa que se mova, mas essa é uma representação inédita dentre protagonistas de uma grande franquia de aventura no cinema.

Diga-me quem shippas, e eu te direi quem és!

Uma das características curiosas dos fandoms é a sua diversidade de conteúdos. Temos, por exemplo, um fã disposto a dissertar, num texto de mais de 10 mil caracteres, sobre as semelhanças dos personagens Rey (de “Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força”) e Jarael (dos quadrinhos “Star Wars: Knights of the Old Republic”). Com a mesma paixão, temos fãs dispostos a investir nos ships, criando ilustrações, textos e montagens que destaquem relacionamentos amorosos que podem fazer parte ou não do universo fictício ao qual se dedicam.

Um dos exemplos mais populares de ship hoje pertence ao universo cinemático da Marvel. Mas, ao contrário do que se imagina, não são apenas fãs sonhando com os romances oficiais de Peter Parker com a Mary Jane em “Homem-Aranha”, ou do Capitão América com a Viúva Negra em “Os Vingadores”. Os ships que realmente “bombam” são os de casais homoafetivos. Alguns dos pares adorados nessa categoria de atividade de fandom são: Bucky Barnes/Steve Rogers (de “Capitão América”), Thor/Loki (de “Thor”) e Matt Murdock/Foggy Nelson (de “Demolidor”). Em “Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força”, o ship entre os personagens Finn (John Boyega) e Poe (Oscar Isaac) foi largamente debatido em sites especializados de cinema, tamanha a sua popularidade entre os fãs. O próprio ator Oscar Isaac botou lenha na fogueira ao afirmar que interpretara no filme como se estivesse em um romance, o que já deixou muitos fãs simpatizantes da causa mais que felizes, assim como pessoas que nunca ouviram falar em Star Wars.

https://vimeo.com/150593339

A cultura de fã pede indivíduos ativos, que querem criar tanto quanto consumir. Nesse contexto, fãs criam ilustrações, fanfics e edições de vídeo como esse trailer “romântico” de “Capitão América: Guerra Civil”.

Observe que não há critério para delimitar os interesses românticos/sexuais dos ships, uma vez que raramente esses relacionamentos de fato se tornam parte das obras de origem. Dependendo do grau de controvérsia do ship, ele pode ser chamado de trash (lixo), podendo ser largamente rejeitado no próprio fandom. Um exemplo de trash ship é o que envolve os personagens Draco e Hermione em “Harry Potter”. Outro ship atual bastante debatido é o que envolve a heroína Rey e o vilão Kylo Ren (Adam Driver) em Star Wars. Vale frisar que consentimento e afinidades são os pontos importantes para os ships “do bem”, de maneira que triângulos amorosos como Rey/Finn/Poe são bem quistos por fãs, ainda que seja um arranjo mais “exótico”, socialmente falando.

O ship, que parece ser a face mais “bobinha” de um fandom, é capaz de trazer elementos interessantes às discussões sobre as grandes franquias do cinema. O fã que curte slash (fanfics com ships gays), por exemplo, pode avaliar em algum momento a representatividade dos homossexuais no cinema, enquanto que os detratores dos trash ships podem discutir sobre a existência ou não do caráter abusivo que permeia o relacionamento fictício que um grupo de fãs adora, debatendo temas que extrapolam o universo das narrativas de fantasia. Foi com esse “ativismo de fã” que muitos rechaçaram o romantização dos personagens Jessica Jones (da série de mesmo nome, interpretada por Krysten Ritter) e o vilão Kilgrave (David Tennant). Na série, Kilgrave controlou a mente e as ações de Jessica, além de estuprá-la inúmeras vezes, retirando aí qualquer abertura para um fã sonhar com um romance entre eles. Não por acaso, a primeira temporada da série é vista como uma importante metáfora sobre relacionamentos abusivos e direitos da mulher.


O ship entre Jessica Jones e Kilgrave foi rechaçado dentre os fãs da série “Jessica Jones” por romantizar a violência contra a mulher, incitando um debate sobre o tema dentre fãs. O sucesso da série também inspirou campanhas como essa, do governo de Brasília.

Outro exemplo é o da série “Game of Thrones”, cujos produtores foram criticados pela inserção de cenas de estupro que não existiam nos livros originais. Ainda que a trama se passe num mundo equivalente à época medieval, fãs consideraram tais cenas como uma tentativa desesperada de chocar o público. Resultado: a crítica impulsionou declarações de Jereny Podeswa, um dos diretores da série, que afirmou que cenas de violência sexual serão melhor contextualizadas no futuro.

E o que aprendemos com esses nerds?

O cinema vem, aos poucos, se aproveitando da popularização de uma cultura de fã que envolve indivíduos ativos, dispostos a propagar mensagens relacionadas aos filmes que gostam. No entanto, esses fãs não possuem um perfil homogêneo, e parte de sua experiência ativa de consumo perpassa a discussão de assuntos socialmente relevantes, como raça, sexualidade e novos modelos econômicos. No final das contas, o fandom também quer a mesma coisa que as outras pessoas: sentir-se representado. Nem todos os membros de um fandom possuem esse perfil, mas os que seguem essa linha fazem tanto estardalhaço quanto os demais, e usam a mesma empolgação de discutir sobre sua série favorita para discutir também temas como racismo, feminismo, justiça social e outros.

A indústria cinematográfica tem prestado cada vez mais atenção a esse tipo específico de público pagante, disposto a ver várias vezes o mesmo filme e torná-lo sucesso de bilheteria pelo simples prazer de vê-lo no topo, mas que também deseja um algo mais. Porém, para isso, a indústria precisa dar a esse público o que ele quer e adequar esses anseios ao seu modus operandi. Adaptação e instinto de sobrevivência são armas essenciais para que o cinema se mantenha forte culturalmente, e olhar os fandoms tem se mostrado uma estratégia lucrativa (para a indústria) e legal (para o público). Então, da próxima vez que você for ao cinema para ver um Star Wars, o novo filme do universo Harry Potter ou de algum super-herói, saiba que você está participando de uma mudança cultural tão maluca e interessante quanto os feitos dos personagens na tela.