Um entregador de pizza iraquiano assassinado em frente à casa de uma mãe de duas crianças, no subúrbio de Londres, com uma única testemunha drogada: poderia ser parte de um universo expandido de “Lei & Ordem”, mas é a premissa de “Collateral”, nova minissérie do catálogo da Netflix, produzida originalmente para a BBC e distribuída internacionalmente na plataforma de streaming.

O que a princípio parece ser apenas mais uma série de investigação procedural, porém, se revela uma tentativa mais ambiciosa pelo roteiro de David Hare – dramaturgo e roteirista responsável por adaptações como “As Horas” (2002) e “O Leitor” (2008) –, que aqui busca refletir sobre alguns dos vários problemas que lhe afligem em sua visão da Inglaterra contemporânea. Assim, o assassinato que parece ter motivação racial, na verdade, ganha ares de uma grande trama de conspiração e se revela o fio condutor de tramas paralelas que exploram temas como imigração, xenofobia, intolerância, machismo, abuso sexual, homossexualidade e disputas políticas. Essa costura, no entanto, nem sempre funciona, e o ritmo que começa promissor vai perdendo fôlego em algumas das histórias paralelas.

A seu favor, “Collateral” tem apenas quatro episódios, é fácil de maratonar, e, acima de tudo, seu elenco bem afinado consegue equilibrar bem a eventual falta de ritmo do final para manter os olhos atentos na história. Entre os escalados, porém, quem brilha mesmo é a protagonista, a detetive Kip Glaspie, vivida por Carey Mulligan.

Acostumada a encarnar tipos frágeis, a atriz tem aqui sua chance de se destacar como a policial encarregada de investigar o assassinato, e que vai aos poucos descobrindo a verdade maior escondida por trás da morte. Kip é tão obstinada quanto Frances McDormand em “Fargo”, e também tão grávida quanto – embora a gravidez da personagem felizmente nunca seja vista como um empecilho ou de forma estereotipada, fato que a própria Mulligan elogiou no roteiro em entrevistas sobre a série. A aparência frágil da personagem contrasta com sua astúcia não aparente, o que surpreende outros personagens e permite que a atriz se divirta à vontade com as camadas de sua protagonista.

No entanto, se Kip carrega sua história com segurança, o mesmo não se pode dizer das outras tramas e personagens, por melhor que estejam os atores envolvidos. Depois de Mulligan, Jeany Spark, como uma versão low budget de Rosamund Pike, é a que mais consegue aproveitar o material que tem em mãos, no papel da assassina (não é bem um spoiler se a informação já está logo no primeiro episódio), uma capitã da artilharia atormentada por fantasmas do passado e do presente.

Enquanto isso, os outros se veem presos a narrativas que pouco andam ou que vão do nada a lugar nenhum: Nicola Walker, por exemplo, é puro carisma como uma vigária lésbica envolvida com a imigrante ilegal que por acaso testemunhou o crime, mas seu conflito entre orientação sexual e o ofício na igreja é pouco explorado além de um grande diálogo expositivo. O mesmo acontece na história da mãe vivida por Billie Piper (que já tinha brilhado em “Penny Dreadful”), reduzida aqui à figura de ex-mulher psicologicamente instável do deputado vivido por John Simm, em outra história que não diz exatamente a que veio.

A existência de todas essas tramas alinhadas parece servir apenas para compor o discurso de David Hare, que tem seu grande ponto em uma reflexão sobre a falência das instituições de modo geral: governo, igreja, polícia, MI5, partidos, todos ineficientes para lidar com seus próprios conflitos internos e, consequentemente, com os conflitos de uma nação que se vê às voltas em um cenário incerto pós-Brexit e com políticas de imigração obscuras. O problema do roteiro de Hare é justamente o pouco tempo de tela para abraçar todo esse mundo temático, e o resultado acaba soando como merchandising social barato de novela das nove: assim, o deputado e a vigária têm suas situações reduzidas a longos diálogos expositivos que desvelam o quão rasas suas histórias são. Além disso, as conexões entre todos dependem de uma série de coincidências que às vezes beiram perigosamente o absurdo. Mesmo na trama que melhor se desenvolve, justamente a da investigação do crime, o final, embora satisfatório, deixa pontas soltas que incomodam à segunda vista.

Em seus melhores momentos, porém, “Collateral” propõe discussões sobre imigração e crime organizado sem descambar para o maniqueísmo (com exceção talvez de um certo agente do MI5) e oferece uma trama policial sólida na maior parte do tempo. A direção de S.J. Clarkson, uma veterana da TV (“Dexter”, “Heroes”, “House”) é segura, apesar de uma fixação por ângulos inclinados questionáveis em muitos momentos. No fim, porém, a grande reflexão sobre um país não funciona e corre o risco de nos deixar tão cansados quanto a personagem de Carey Mulligan, que, no final, só quer mesmo uma boa noite de sono.