Na década de 70, o diretor William Friedkin gozava de um alto prestígio em Hollywood. Vinha do sucesso comercial e artístico por Exorcista (1973) e Operação França (1971). Do alto do seu pedestal, o cineasta foi do céu ao inferno, pois realizou diversas obras que fracassaram comercialmente. Parceiros da Noite (1980), Viver e Morrer em Los Angeles (1985) e este Comboio do Medo (1977) são exemplos desta safra.

Comboio teve um grande impacto negativo para o diretor: foi um enorme fracasso de bilheteria, prejudicando a sua carreira em Hollywood, culminando na sua demissão dos Estúdios Universal e a partir dali, teve dificuldades em arranjar financiamentos para suas produções – e quando conseguiu, a maioria como exposto acima, naufragou nas bilheterias. Pode-se até dizer que o trabalho deu o pontapé inicial para que a chamada Nova Hollywood entrasse em declínio, sendo O Portal do Paraíso (1980), de Michael Cimino, o responsável final em fazer o copo transbordar.

Friedkin aceitou o desafio de ir para o meio da selva da América do Sul e refilmar um dos trabalhos mais cultuados do cinema europeu, o suspense francês O Salário do Medo (1953), dirigido por Henri Georges-Clouzot. Em uma entrevista por volta de 2000, o diretor disse que as filmagens foram uma verdadeira descida ao inferno no mesmo nível que Coppola sofreu em Apocalypse Now (1979).

Mais Comboio do Medo é uma daquelas obras que merece ser descoberta por qualquer cinéfilo que se preze. É um verdadeiro exercício (e só Friedkin sabe proporcionar) de tensão narrativa eletrizante, sombria e pessimista, mostrando-se na sua essência, um grande filme de ação que teve o azar (diga-se de passagem, tremendo) de estrear na mesma semana de Star Wars  – A Nova Esperança (1977). Enquanto a saga espacial de George Lucas misturava aventura fantástica de matiné, a obra de Friedkin é violenta, crua, niilista e sufocante. A força visual do filme é tão grande que reproduz com maestria a violência e a miséria com um realismo impressionante, quase documental.

A sinopse é simples: Quatro homens impedidos de voltar aos seus próprios países, por diferentes motivos, se encontram num país pobre da América do Sul, onde são contratados por uma companhia de petróleo para uma missão quase suicida: transportar uma perigosa carga de explosivos por um terreno acidentado. O diretor divide o seu filme em dois momentos específicos: No primeiro mostra o passado dos quatro personagens e os motivos que o levaram ao suposto país (filmado como uma latrina e uma versão real do purgatório). No segundo centra-se na missão suicida que os quatro aceitaram realizar.

Comboio do Medo reúne as diversas características do cineasta: atos heroicos em personagens marginalizados (os quatro “heróis” são um matador de aluguel, mafioso, terrorista muçulmano e banqueiro corrupto), o comportamento obsessivo e o limite dos personagens, ultrapassando muitas vezes a linha entre a sanidade e loucura. Tudo isso, movido por um sentimento ambicioso de saírem de uma realidade em forma de pesadelo que literalmente “roubou” a liberdade de cada um, em virtude dos comportamentos amorais realizados no passado e é nesta missão suicida que encontram a possibilidade de redenção.

Ainda que seja o trabalho com o ritmo menos intenso da filmografia do diretor, os momentos de ação são os melhores da sua carreira: A missão suicida é toda filmada para deixar o espectador tenso. A cena em que o comboio atravessa uma ponte completamente instável é um verdadeiro espetáculo cinematográfico, de se questionar como o diretor conseguiu filmar esta sequência em uma época sem efeitos digitais. É uma prova que os efeitos tradicionais proporcionam um sentimento de suspense, medo e perigo que muito CGI e computação gráfica jamais atinge – algo semelhante visto no recente Mad Max – Estrada em Fúria (2015)

O elenco está afiadíssimo. O finado Roy Scheider (que já tinha trabalhado com o diretor em Operação França) é o rosto mais conhecido, porém temos gente de grande porte como  o ótimo Francisco Rabal, ator de vários filmes de Buñuel como Veridiana (1961). Uma curiosidade é que o diretor queria Steve McQueen, Marcello Mastroianni, Jack Nicholson e Clint Eastwood para os papéis principais. McQueen recusou porque exigiu que criassem um papel para a sua namorada Ali MacGraw, o que Friedklin não aceitou. Em entrevista mais recente, ele alega se arrepende disso, pois talvez com o ator o filme fosse sucesso na época.

A trilha sonora feita pelo grupo Tangerine Dream é outro belo destaque, que sabe imprimir cada nota musical da loucura que a gente presencia em tela. Por fim, a direção crua e realista de Friedkin são pontos significativos da obra, mostrando todo ambiente como uma força selvagem em devorar o homem.

O jornalista Peter Biskind quando lançou o seu livro sobre o cinema americano da década de 70, fez um comentário interessante sobre o filme: O Comboio do Medo é um filme implacável. Uma pena que ficou conhecido como “maldito”, mas é uma obra que sintetiza a luta do homem contra o meio e do corpo contra a matéria, em outras palavras, a impossibilidade do homem de fugir do inferno construído por ele através das suas próprias escolhas. Para o cineasta, em prol de corrigir os erros do passado e alcançar a redenção, não há limites entre a sanidade e a insanidade. Um Filmaço recomendável para você assistir de joelhos, afinal não é todo dia que você presencia um exercício cinematográfico dos mais intensos e em grande forma da Nova (e finada) Hollywood.