Permita-me uma reflexão, caro leitor.
Este ano confesso que fiquei na dúvida se valia a pena fazer o tradicional Especial Terror do Cine Set, por algumas razões. Primeiro, porque por motivos de conflito de agenda, o eminente Danilo Areosa, meu querido amigo e parceiro nessa empreitada desde a primeira edição em 2015, não vai poder participar. E segundo, porque… bem, já não há terror demais em 2020?
Sério, este ano está… dureza. Mas não preciso dizer isso a vocês, não é mesmo? Todos nós estamos sentindo o peso de uma realidade bem opressiva, com uma doença por aí que já matou um milhão de pessoas no mundo todo – e no momento em que escrevo este texto, mais de 144 mil brasileiros – e, ainda por cima, cheia de problemas ambientais, políticos, econômicos… Às vezes parece que em 2020 a realidade quis botar no chinelo os roteiristas de cinema que sempre ganharam a vida inventando coisas assustadoras e/ou apocalípticas para a nossa diversão.
Por tudo isso, admito que estava meio em cima do muro quanto a fazer o Especial Terror este ano. As duas últimas edições foram marcantes, com direito até a exibição de filmes clássicos do gênero no Casarão de Ideias, com quem firmamos uma ótima parceria, eventos que foram muito legais e tiveram ótima repercussão. Por motivos óbvios, não faremos exibições este ano, portanto, aquela interação tão legal que tivemos com fãs do cinema de terror nas edições passadas não vai se repetir. Isso também contribuiu para o meu relativo desânimo.
Mas aí…
Lembrei-me de um artigo que li, publicado há uns alguns meses, sobre um estudo da Universidade de Chicago que dizia que fãs de filmes de terror lidam melhor com as ansiedades provocadas pela pandemia de Covid-19 do que as pessoas que fogem desse tipo de gênero cinematográfico.
Isso me levou a refletir e a pesquisar um pouco.
Na verdade, esses estudos são relativamente comuns, e o papel, digamos, “terapêutico” dos filmes de terror é reconhecido e estudado. No artigo da revista norte-americana Psychology Today, o autor fala do papel dos filmes de terror como redutor da ansiedade para algumas pessoas. No famoso site/revista Vice, a autora conversou com pesquisadores para compreender porque, para várias pessoas, filmes assustadores servem como alívio temporário para problemas psicológicos sérios como ansiedade e depressão. São em inglês, mas recomendo a leitura de ambos.
Basicamente, o que os pesquisadores afirmam nestes artigos é que os filmes de terror permitem a uma parcela do público experimentar emoções negativas e ansiedades de forma controlada. Porque, por mais que as técnicas cinematográficas busquem provocar a nossa imersão na história, e por mais tensa que possa ser a situação na tela, nosso cérebro tem consciência, em algum nível, de que o filme é uma mentira. Sabemos que o cara que tem a pele arrancada num Jogos Mortais qualquer não morreu de verdade; por mais realista que pareça, aquilo tudo é um efeito bem produzido; e essas pequenas liberações das ansiedades causam alívio momentâneo.
VÁLVULAS DE ESCAPE DA REALIDADE
E em 2020, as ansiedades se espalharam tal e qual um vírus gripal. Bem, o cinema em geral serviu como opção vital de entretenimento e catarse emocional durante os meses de isolamento. A arte manteve muitas pessoas sãs. E filmes de terror, em especial, geralmente provocam catarses muito poderosas…
Isso é típico do gênero. Quando se analisa a história do terror como gênero cinematográfico ao longo do século XX, percebe-se que, quanto mais tumultuada a época, quanto mais problemas sociais e econômicos, mais as pessoas recorreram a esses filmes como válvulas de escape. Nos Estados Unidos, as pessoas fugiam da Grande Depressão indo aos cinemas para ver Drácula e Frankenstein, ambos lançados em 1931. O Japão, ainda em recuperação do trauma das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, exorcizou suas emoções com a simples e poderosa alegoria do Godzilla. Hoje vemos um tipo de renascimento do gênero, com cineastas e produções de todo o mundo que conseguem aliar sustos e tensão a desenvolvimento de personagens, exploração de temas relevantes e visões autorais.
Eu realmente acredito que o maior propósito da arte em geral, não só o cinema, é promover reflexão. Claro, filmes e histórias podem e devem nos divertir e nos fazer esquecer os problemas por algumas horas, isso é válido e positivo, ainda mais hoje. Mas acima de tudo, e aqui coloco de forma bem simples, devem também nos ensinar como viver, nos fornecer lições para enfrentar os problemas da vida. Vários filmes de terror fazem isso: A história do gênero é composta de obras que refletiram para a sociedade, num espelho distorcido, os seus temores e os seus traumas, para que possamos lidar melhor com eles. E quem se expõe com frequência aos medos (ou aos dramas) da ficção está mais bem preparado para lidar com essas emoções na vida real.
Acredito nisso, por isso vai ter Especial Terror este ano. Em menor escala, mas vai ter sim. Porque em 2020, o cinema foi uma tábua de salvação, e o terror em especial adquiriu quase ares de terapia. E porque fugas periódicas da realidade, especialmente este ano, se tornaram importantes e necessárias.