Quem disse que o tempo é um bom juiz deve ter sido mais uma vítima do fake news.

Você pode argumentar que, não fosse o tempo e sua (dizem) infalível justiça, criadores como Schubert, Van Gogh, F. Scott Fitzgerald e até mesmo Nick Drake continuariam em doce esquecimento, sem jamais ter maravilhado o mundo e influenciado as suas respectivas artes.

É verdade – mas pare para pensar também nos exemplos contrários, de artistas que vão se afastando de nós a galope, sem terem feito nada para ver suas obras se transformarem, pouco a pouco, em pasto para acadêmicos ranhetas. Nathanael West na literatura, César Franck na música clássica, Sidney Miller na MPB, isso sem falar em gêneros inteiros, como o musical ou o western no cinema. Preston Sturges (1898-1959), o primeiro roteirista a chegar à direção e um dos maiores inovadores da comédia no período clássico do cinema americano (entre as décadas de 1930 e 50) é um deles – outro nome que precisa ser lembrado e exaltado de tempos em tempos, porque a qualidade da sua arte exige isso.

E o ponto alto dessa arte tem de ser Contrastes Humanos, a comédia ferina e subversiva que Sturges lançou em 1941, mesmo ano de – qual era o nome mesmo? – Cidadão Kane, de Orson Welles. Um filme que, por sinal, não existiria sem Sturges – um roteiro seu, Poder e Glória, filmado em 1933 com Spencer Tracy no papel principal, trazia uma estrutura narrativa visionária, cheia de avanços e recuos no tempo, que acabaria sendo uma inspiração confessa para Herman J. Mankiewicz, o escriba de Kane. Porém, enquanto Mankiewicz, Ernst Lubitsch, Billy Wilder e os irmãos Marx foram entronizados nos manuais de cinema como senhores da comédia ferina, das palavras que fazem rir enquanto abrem vãos e tiram sangue, Preston Sturges ficou para trás, menosprezado como um importante precursor, enquanto a série extraordinária de filmes que ele rodou entre 1939 e 1944 (O Homem que Se Vendeu, Natal em Julho, As Três Noites de Eva, Contrastes, Mulher de Verdade, Papai por Acaso e – ufa! – Heróis de Mentira) passou décadas acumulando poeira e chuva, restrita a poucos mas fundamentais connaisseurs, como Woody Allen, os irmãos Joel e Ethan Coen e os roteiristas da série Os Simpsons. Bom, a julgar pela qualidade do que esses aprendizes de Sturges fizeram, algum mérito ele deve ter, não?

Para saber, basta assistir os filmes. Contrastes envelheceu com uma graça que poucas coisas daquela época ainda têm, e continua uma aula de roteiro e timing cômico. E com voos de metalinguagem que não deixam nada a dever a Jean-Luc Godard, Lars Von Trier e outros realizadores-pensadores da mídia cinema. Mas da maneira mais sutil e escrachada possível – na trama, Joel McCrea é John L. Sullivan, um famoso diretor de Hollywood que busca uma arte com relevância social. Depois de enriquecer fazendo comédias de sucesso, ele sente que o cinema se tornou uma força de alienação, distraindo o povo da absurda opressão em que ele vive. Sullivan, em seu idealismo, acredita que o papel do cinema deva ser o de fomentar a tomada de consciência, de apresentar os problemas da gente humilde em toda a sua crua tragédia. “Mas o que você entende de passar fome?”, retruca um de seus produtores.

É verdade – Sullivan sempre teve uma vida confortável, estudou em boas escolas, é branco, teve todas as oportunidades. Sem poder argumentar contra isso, o diretor resolve se lançar num “experimento”: ele vai largar por um tempo seus carros e sua mansão para viver entre os miseráveis, para conhecer o “problema” de perto. Como em As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (que o título original do filme, Sullivan’s Travels, faz questão de referenciar), a jornada de Sullivan é de fato uma de autodescoberta, mas recheada do humor ácido e, por vezes, pungente e até trágico, de seu diretor.

Não faltam cenas antológicas ou frases ferinas para deliciar quem se liga nessas coisas (imagino que todos nós), num estilo naturalista e direto que continua a soar moderno, diferente da fala empostada e dos diálogos preciosistas tão típicos de uma época em que o cinema, ainda muito ligado ao teatro, descobria a sua própria linguagem. Ouso dizer que, mais ainda do que Billy Wilder, cujos diálogos às vezes ficam estilizados demais para fazer caber todos aqueles socos verbais, é Sturges o autor mais moderno de sua época, o precursor mais direto da Nova Hollywood e seus personagens rudes, incultos, inarticulados.

A paisagem moral dos filmes do diretor também está muito além do padrão de sua época – seus heróis tipicamente espertalhões ou oportunistas não tem nada com o idealismo ou o franco escapismo do cinema americano durante a Segunda Guerra Mundial. Para um filme que é, a princípio, uma comédia, não faltam pesadas e provocativas cenas detalhando a vida dos miseráveis dos Estados Unidos, para esmagadora tristeza de Sullivan e sua companheira, a espevitada Garota (seu nome não é dito uma única vez no filme, mas você só se dá conta disso ao ler os créditos no final – de qualquer forma, o papel lançou a novata Veronica Lake para o estrelato, que ela não soube capitalizar devido a uma triste dependência de álcool).

Outras surpresas são a abertura, uma sequência de briga num trem que traz um nível de violência gráfica e sangue esguichando atípico para seus dias de Código Hays (aliás, é um filme dentro de um filme, da mesma forma que em Kane), e a bela sequência da igreja no final, em que Sullivan, após uma série de reveses que o transformou em prisioneiro de um campo de trabalhos forçados (e a franqueza do filme ao retratar a brutalidade do tratamento dos internos em campos do tipo fez com que Contrastes só fosse distribuído internacionalmente após a Guerra – no entendimento dos censores, o filme pintava um quadro muito negativo do país, que poderia ser usado como propaganda anti-americana), é levado junto com os colegas para um templo afro-americano, onde ele redescobre o valor do cinema de entretenimento ao rir à larga com um desenho de Pluto, da Disney. À época, Walter White, presidente de uma associação nacional para o progresso da população negra, parabenizou Sturges por seu retrato positivo e dignificado das pessoas de cor (de fato, a sequência redime outra, anterior, um retrato mais tipicamente cômico do cozinheiro negro que é arremessado pra lá e pra cá num ônibus, numa cena deperseguição a Sullivan).

Embora Contrastes Humanos tenha sido uma boa bilheteria à época, continuando a maré positiva para Sturges, a crescente moral do diretor levaria ele a dar o salto mortal que foi a ruína de tantos cineastas, como D. W. Griffith e Francis Ford Coppola: ele se tornou produtor, financiando novos projetos do próprio bolso. Trabalhando em parceria com o milionário excêntrico Howard Hughes, seu primeiro filme no pós-Guerra, Trapalhadas do Haroldo (1947), com a lenda do cinema mudo Harold Lloyd, foi um fracasso de bilheteria, o que levaria Hughes a engavetá-lo para remontagem, um duro golpe na até então infalível ascensão de Sturges. Quando o projeto seguinte dos dois, um roteiro de Sturges chamado Vendetta (1950), provocou a contratação e demissão, por Hughes, de Max Ophüls e em seguida do próprio Sturges, o caldo azedou, e o prodígio Preston, com duas humilhações seguidas, foi largado à própria sorte em Hollywood.

O resto de sua carreira seria uma triste coda para os triunfos da época da Guerra, uma história muito parecida com a de seu colega Frank Capra. O triste é que todos esses nomes – Capra, Hughes, Wilder, Welles – acabaram tendo amplo reconhecimento e entrando para a cultura popular, enquanto Sturges viu sua estrela, como o primeiro roteirista a migrar para a direção dentro do studio system, algo impensável até então, diminuir e virar um nota de rodapé na história dessa arte, apesar da admiração que nunca lhe foi negada por nomes de grande sucesso, como Martin Scorsese, ou todos os citados lá no começo do texto. Felizmente, o advento do vídeo doméstico, da internet e de editoras especializadas na recuperação de clássicos, como a Criterion, vem fazendo Sturges ser redescoberto e começar a adentrar as listas de grandes filmes americanos. Esteja na vanguarda desse movimento e comece a redescobrir Sturges, um artista que, como poucos, merece ter seu próprio cult.


NOTAS

Roteiro: 9,5
Direção: 8,5
Joel McCrea: 8,5

NOTA DO FILME: 9