O que classifica um filme obrigatório, que elementos ele deve ter para se dizer que é imprescindível que os cinéfilos (e não-cinéfilos) assistam ao trabalho? Bom, creio que não há resposta definitiva para essa questão, assim como ac0ntece com todas as perguntas relacionadas à arte. Fatores como inovação na linguagem, fazer um importante e fidedigno retrato histórico de uma época, sucesso em grandes premiações, ou um destaque muito grande em alguma categoria do filme, são os elementos mais citados.

Tendo isso em vista, pode-se dizer tranquilamente que Cópia Fiel, penúltimo filme do mestre iraniano Abbas Kiarostami, é um filme obrigatório. Não que ele seja um filme impossível de não gostar, certamente ele deve ter causado surpresa em muitas pessoas quando leram críticas tão elogiosas ao filme, alçando-o a status de obra-prima. Creio que tal confusão se deve ao fato de que a força do jogo de Cópia Fiel está nos seus detalhes. É verdade que com o decorrer da trama, a radicalidade do jogo proposto por Kiarostami não deixa dúvidas sobre o teor da sua proposta, mas ainda assim há muitas coisas nas entrelinhas, e são elas que dão um colorido todo especial ao longa.

A trama extremamente simples, como é o costume do diretor e roteirista, acompanha James Miller (William Shimell), um escritor inglês que está de passagem pela Itália para lançar o seu novo livro, que trata sobre a importância das cópias de obras de arte para a evolução e difusão da mesma. Lá ele encontra Elle (Juliette Binoche), uma mulher atarefada com os cuidados com o filho pré-adolescente, mas que encontra tempo para levar Miller a um passeio pela cidade. A partir de um determinado acontecimento, a trama naturalista dá espaço a um outro momento, no qual James assume o papel de marido de Elle, e os dois começam a discutir a sua relação.

Lembro-me que quando assisti a Gosto de Cereja (1997) fiquei muito impressionado com o filme, foi um impacto muito grande. Atrás de críticas que falassem sobre o longa, que ainda é considerado por muitos a grande obra-prima de Kiarostami, me deparei com uma análise bastante negativa de Roger Ebert. Ele havia detestado o filme, o achado chatíssimo, não conseguia enxergar as tão citadas qualidades deste filme vencedor da Palma de Ouro. Esse foi um acontecimento importante pra mim, pois me dei conta, ainda mais, de como uma obra de arte é subjetiva, pois se um profissional tão conceituado como Ebert não conseguia ver qualidades neste filme, é porque não se trata apenas de compreender ou não a proposta do trabalho, mas sim de que maneira isso te toca.

Digo isso porque acho legítimo a pessoa assistir a Cópia Fiel e achar que é um trabalho meio aborrecido, que não tem nada de extraordinário, embora discorde profundamente disso. Entendo que o estilo de Kiarostami pode causar afastamento em certo tipo de público, mas ao mesmo tempo, se você conseguir enxergar a razão de ser da sua proposta, verá que há uma provocação excepcional ali, que nos tira do lugar e nos questiona sobre diversas certezas que temos como apreciadores de arte. E é preciso ter em mente que isso é muito mais importante do que gostar ou não do filme.

Os dois momentos claramente distintos servem para que a provocação fique exposta sem rodeios, apesar de ainda haver uma zona cinzenta, especialmente no início da segunda metade. Ela nos diz que o que vimos até ali, todo aquele naturalismo, a economia na trama e nas atuações (que se assemelham a Antes do Amanhecer), eram apenas informações jogadas para apresentar os personagens, ou apenas para confundir mesmo, para que a segunda metade fizesse a quebra, e nos deixasse em dúvida sobre nossa percepção acerca do que vimos.

Kiarostami nos diz: vocês conhecem essas pessoas, vocês sabem quem são, no que trabalham, com quem se relacionam, e o que pensam. Colocado isso, eu vou criar uma trama dentro da outra, vivida por essas mesmas pessoas, e quero ver de que forma ela chega até você, todos sabendo que aquilo não faz sentido numa linha narrativa tradicional. Com isso crio a relação com o que Miller fala sobre as réplicas de obras de arte, que são vistas de maneira diferente dependendo do fato de sabermos ou não se estamos diante da obra original. Se não sabemos que estamos diante de uma cópia, e nos entregamos, vivemos uma relação com o material, e depois descobrirmos que se tratava de uma cópia, a sensação que tivemos diminui, ou deveria diminuir, o seu valor? Mas o “original” também não é apenas uma representação, uma réplica, do real?

Eduardo Coutinho já fizera uma análise desse assunto no clássico Jogo de Cena (2007), ao colocar atrizes para representar histórias reais de mulheres, intercalando os seus depoimentos com os das mulheres citadas. Coutinho provocava: os depoimentos das atrizes não podem ser considerados verdadeiros? Mas se aquilo te emocionou, não foi de verdade? Quando a mulher recorda o acontecimento de sua vida, de certa maneira ela não está também representando, ao contar como a história se deu?

Aqui Kiarostami apenas abre a quarta parede. A partir do momento em que a senhora que trabalha no café os vê como um casal, foi dado início ao jogo. De certa maneira isso conversa com a realidade de cada um de nós, pois histórias se formam ao nosso respeito pelas pessoas ao nosso redor pela maneira com que elas nos veem, não necessariamente com o que a verdade diz. E o diretor ainda questiona o conforto que sentimos quando nos envolvemos com uma história que se desenvolve de maneira convencional, pois sabemos que aquilo não é verdade, trata-se de uma ficção, que fingimos acreditar naquilo, mas ao sermos expostos a uma ruptura radical dessa estrutura, e vermos que tal situação não corresponde a uma “realidade”, temos dificuldade de compreender. Se sabemos que ambas as situações são irreais, por serem ficcionais, por que vemos as situações de maneiras tão distintas?

Com o passar do tempo, a proposta do diretor vai ficando cada vez mais clara, e detalhes referentes a trama também vão sendo aplicados, como quando os dois passam por casais de diferentes idades, dos recém-casados até os juntos há muitos anos, traçando assim um paralelo interessante sobre de que maneira a relação deles se desenvolveu, e o que é possível esperar dali em diante. Também é possível notar um signo interessante vindo da fala de Miller, visto que quando ele representava “apenas” o escritor, ele falava apenas inglês, por não dominar o francês, nem o italiano. Porém a situação muda com o tempo, pelo fato dele assumir outra figura, que aí sim, fala em francês e italiano.

Mantendo elementos da primeira metade, como o fato dos dois, mesmo na segunda parte, comentarem o livro como sendo escrito por Miller, e ele ainda ter que pegar o trem às 9, como dissera quando estavam no carro, Kiarostami mantém uma rica ambiguidade, mesmo que sutil, que faz com as duas linhas narrativas se sustentem por si só, sendo interessantes o suficiente para manter nosso interesse, não apenas se sustentando na proposta de direção.

Por experimentos como esse que Abbas Kiarostami segue sendo um dos diretores mais interessantes de ser acompanhados, pois se sabe que ao assistir a um filme dele, certamente sairemos mais ricos, e com a cabeça aberta a novas possibilidades.

NOTA: 8,5