Depois da polêmica lista da BBC sobre os 100 melhores filmes do século 21, a revista The Hollywood Reporter jogou mais lenha na fogueira na semana passada quando divulgou o resultado de uma pesquisa realizada com os chefes de estúdios, vencedores do Oscar e profissionais ligados às produções de Hollywood para saber os melhores filmes de todos os tempos. O vencedor foi nada menos que O Poderoso Chefão (1972) de Francis Ford Coppola.

Se você é grande fã da saga dos Corleones e acredita que ela é a única contribuição de Coppola ao cinema da máfia, você está redondamente enganado. Em 1984, ele retornou ao submundo do crime que tanto tentou se desvencilhar desde O Poderoso Chefão – Parte II (1974) – principalmente da alcunha de diretor da máfia – em Cotton Club, uma obra ambiciosa, repleta de problemas de bastidores que acabou esquecida dentro da sua filmografia, afinal se fosse valorizada com certeza não faria parte da coluna Advogado de Defesa do Cine Set, correto?

A pergunta que você caro leitor pode fazer em relação a ele é a seguinte: Cotton Club é do mesmo naipe ou qualidade do épico dos Corleones? Coppola criou outra obra impactante em relação à realidade dos mafiosos? A resposta mais adequada para estas perguntas é tanto o sim quanto não. Cotton não chega ao mesmo patamar de coerência narrativa do clássico Poderoso Chefão, porém está longe de ser dispensável. Apresenta qualidades ímpares que se destacam na sua produção vigorosa, vibrante e que demonstra um teor apaixonado de Coppola relacionado à arte do espetáculo, que é até difícil tirar os olhos da tela apesar das suas incongruências.

Até para atuar como advogado de defesa do filme teria que enfrentar o diretor, já que ele próprio desqualifica sua obra “Este nem sequer é um filme que eu quisesse muito realizar” disse para veículos de comunicação na época. Por isso, imaginamos que o seu envolvimento ocorreu por um motivo: as dívidas geradas. Isso ocorrreu porque no início da década de 80, Coppola se meteu em uma grande enrascada financeira devido o fracasso comercial do seu extravagante musical O Fundo do Coração (1980), primeiro filme bancado pela sua própria produtora, American Zoetrope.

A intenção ao montar um estúdio, era de investir em obras que remetessem a um cinema autoral de reflexão, próximo ao estilo easy rider. Ele serviria também para atender a necessidade de produções mais simples, diminuindo a carga de estresse que vivenciou na gestação de seus outros trabalhos – sempre há tretas em qualquer filmagem do cineasta e quem assistiu o documentário Heart Of The Darkness sobre Apocalypse Now (1979) sabe o que estou falando. Com fracasso da primeira obra da Zoetrope, Coppola aceitou fazer “trabalhos encomendados” para relançar sua carreira e fazer um bom caixa financeiro. São os casos de Vidas Sem Rumo (1982) e O Selvagem da Motocicleta (1984) que ajudaram a dar novo destaque na sua carreira.

Motivado em tentar pagar de uma vez por todas as suas dívidas, ele encarou Cotton Club e assim, voltar as raízes da máfia. Teimoso, não digeriu o fracasso do seu musical e resolveu misturar na produção os seus dois temas favoritos: música e violência. Isso dá um escopo tanto belo (temos jazz e espetáculo) quanto bruto (a violência da máfia e seus crimes), mistura que permite a Coppola continuar a sua velha obsessão de buscar a revitalização de gêneros e temáticas dentro dos seus trabalhos.

Cotton é um filme pequeno quando comparado a outras produções suas, só que o modo como ele encena suas sequências dão um impacto visual megalomaníaco de espetáculo, mesmo  90% das cenas serem de filmagens internas. Temos seu toque autoral que utiliza-se de uma situação real de um club em Nova York que realmente existiu nos anos 20 e 30 para transformá-la em uma história que o cinema adora contar. Afinal, só ele para misturar gângsteres, jazz, sapateadores, violência e momentos musicais, tudo em uma mesma embalagem e nos convencer de assistir este produto excêntrico.  Um trabalho menor, diga-se de passagem, quando comparado a Poderoso Chefão, porém ambicioso na recriação da época através de cenários majestosos e números musicais deslumbrantes que leva o público a sentir como se vivesse aquela época.

Nesta mistura, temos Dixie Dwyer (Richard Gere) trompetista branco e talentoso que salva a vida do gangster judeu Dutch Schultz (James Remar). Este como reconhecimento não apenas o contrata para trabalhar com ele como convence o mafioso Owney Madden (Bob Hoskins), dono do clube que dá o título ao filme, a contratá-lo para participar dos espetáculos. Dixie acaba se apaixonando pela cantora Vera (Diane Lane), garota de Dutch. Acompanhamos também a saga dos irmãos sapateadores Williams (interpretados por Gregory Hines e seu irmão) que no palco do Cotton Club, tentam ascender artisticamente.

É neste ambiente de personagens e situações reais com outros criados pelo filme que Coppola cria sua América enraizada no preconceito racial e no mundo de espetáculos, financiados por mafiosos que se divertiam neles, enquanto nos bastidores, realizam negociatas amorais e cometiam seus crimes para satisfazer seu glamour. É o retrato dos EUA do período da Grande Depressão, período marcado pelas rixas raciais no bairro do Harlem, onde o Jazz despontava nos clubes. Neste ponto temos aqui um dos argumentos de defesa mais sólido da produção: consegue dar espaço para os dramas dos personagens e a violência, jamais ofusquem ou diminuam as sequências musicais, permitindo o equilíbrio no trabalho.

Outro destaque é a ótima montagem, em conciliar as duas tramas diferentes, o musical e a de violência. Um ótimo exemplo é quando ela alterna a apresentação de sapateado de Sandman com uma sequência de pura violência entre mafiosos. Enquanto o personagem executa o seu número, o som dos seus passos simbolizam os mesmos ruídos das balas saindo de uma metralhadora que mata um dos mafiosos. É a junção de situações como esta que mostram que no showbusiness americano daquele período, a violência e a música podem soar como elementos vitais para uma ópera sangrenta.

Há outros momentos dramáticos belíssimos que não apenas denotam o cuidado com os aspectos técnicos como dimensionam o tom operístico e grandioso que Coppola emerge nas suas obras– Cotton neste quesito se aproxima muito da intensidade de Apocalypse Now e Poderoso Chefão. A cena de amor entre Dixie e Vera destaca-se pela versatilidade do colorido que o realizador filma os rostos dos personagens para em seguida, mostrar os seus corpos encobertos pelas sombras de uma cortina. Fechando esta cena, a relação de amor é toda capturada pela câmera apenas através das silhuetas de Dixie e Vera.

Vale ressaltar que o roteiro traça alguns paralelos interessantes entre Cotton e Poderoso Chefão: a rivalidade entre os irmãos Williams que culmina na traição de Sandman em relação a Clay lembra o conflito de Michael (Al Pacino) e Fredo (John Cazale) no segundo Poderoso Chefão – ainda que Coppola faça da reconciliação entre eles, uma das cena mais memorável do filme, onde a traição de Sandman é perdoada através do dueto de sapateado entre os irmãos, denotando a importância da força da música na resolução dos conflitos. O próprio dilema de Dixie, um sujeito honesto que se envolvido pelo acaso no mundo da corrupção e que precisa lutar para não ser tragado por ele é semelhante ao de Michael no primeiro filme da saga. A importância da família – aqui presente na figura da mãe e do lar – é outra característica que também remete a trilogia clássica do cinema.

A própria produção do longa é praticamente o esqueleto que estruturou a vida dos Corleones no cinema: o produtor Robert Evans, o roteirista Mario Puzzo (responsável pelo livro de o Poderoso Chefão), além do cineasta. Pena que toda a produção foi um caos, um verdadeiro elefante branco e até hoje, os conflitos das gravações fazem o filme ser mais lembrado do que seus méritos. Dizem os boatos que Coppola foi quase para vias de fato com Evans, que acabou sendo proibido pelo diretor de frequentar as filmagens. Puzzo foi demitido antes das filmagens, retornando na sua metade e seu argumento passou por mais de 30 a 40 revisões. A versão final do filme tinha mais de três horas e orçamento extrapolou o limite – situação bem comum na vida do cineasta. Logo, Cotton Club é uma espécie de elefante branco em uma loja de cristal na sua produção.

Ainda bem que isso não afetou no desempenho do elenco. Richard Gere e Diane Lane apresentam uma ótima química. Ambos reproduzem energia e explosão dos seus jovens personagens que estão sempre brigando e logo depois se amando, enquanto tentam sobreviver na realidade corrupta da máfia. Inclusive é o próprio Gere que faz o seu solo de corneta. Já Lane era musa de Coppola na época, trabalhando com o diretor em obras anteriores e incorpora uma bela Femme Fatale mesmo com apenas 19 anos na época. Por mais que goste de ambos, o destaque do elenco são os coadjuvantes. O finado Bob Hoskins (faleceu em 2014) faz um excelente mafioso, digno da série Poderoso Chefão: sedutor, carismático e ardiloso. Já o subestimado James Remar, é o mafioso judeu explosivo e agressivo que lembra muito o problemático Tommy de Joe Pesci de Os Bons Companheiros (1990). Fechando ainda temos Gregory Hines esbanjando simpatia, responsável pelo toque elegante e humano em vários momentos do filme.

O fato de Coppola desdenhar da sua própria obra, explica alguns dos problemas que são perceptíveis no filme. O principal é o descompasso entre o enredo mafioso e a história de superação racial. O realizador fica mais a vontade para impor intensidade à violência e aos musicais do que desenvolver o olhar crítico em relação ao racismo, que vale ressaltar é bem superficial e ingênuo. Os conflitos de bastidores com certeza geraram uma identificação maior do cineasta com o Dixie que funciona como seu alterego, um artista com seus próprios valores que se envolve com a máfia, participando deste meio sórdido, mas que tem na sua arte e talento a forma de impor sua moralidade e honra. Isso diz muito de Coppola que devido seus problemas financeiros precisou fazer obras encomendadas para os grandes estúdios (a máfia) ao mesmo tempo em que tentava preservar a essência da sua arte. Cotton Club apesar de todo o seu inferno astral e sua produção caótica, é o ato de resistência e persistência do cineasta. Por isso merece esta defesa.