Tanto em “Apenas uma Vez” quanto em “Mesmo Se Nada Der Certo”, o diretor irlandês John Carney demonstrou o poder que a música exerce sobre nossas vidas. Em “Sing Street”, considerado seu trabalho mais pessoal, Carney consegue estabelecer um diálogo ainda maior com seu público, propondo reflexões mais abrangentes com teor intimista e escapista a partir de um adolescente em busca de identidade. Neste mesmo rumo segue “A Música da Minha Vida”, dirigido pela queniana Gurinder Chadha. 

O filme se passa na década de 1980 e acompanha Javed, um adolescente de origem paquistanesa que mora em Luton, na Inglaterra. Ele sonha em ser escritor e compõe versos para lidar com a opressão do pai e a intolerância da cidade em que reside. Um novo mundo se abre para ele quando conhece as canções de Bruce Springsteen e adota suas letras intimistas e sociais como estilo de vida.  

O roteiro é inspirado nas experiências do jornalista Sarfraz Manzoor e seu livro de memórias “Greetings from Bury Park: RaceReligion and Rock N’ Roll”, que aparece em uma das cenas do filme. O jornalista assina o roteiro ao lado de Chadha e Paul Mayeda Berges. 

Springsteen para o mundo de Thatcher 

Assim como em “Sing Street”, “A Música da Minha Vida” usa a situação inglesa como background narrativo. No filme de Chadha, o contexto são as relações político-culturais que pavimentaram o governo de Margaret Thatcher. A universalidade das letras de Bruce Springsteen dá voz, nesse caso, aos que mais foram atingidos por esse período político.  

Por isso, as músicas surgem de forma orgânica, estabelecendo relações eficazes entre a recessão e os movimentos de opressão e racismo que ganharam força na época. A família de Javed serve como metáfora para descrever essa tensão.  

A cineasta tem ascendência indiana e, por isso, costuma discutir elementos da cultura asiática em suas produções, sempre procurando interligá-los à visão de mundo ocidental – como aconteceu em “Driblando o Destino” (2002). Em “A Música da Minha Vida”, sua identidade cultural se expressa na abordagem da complexa relação familiar de Javed 

Além de reproduzir costumes como a ligação inquebrável entre paquistaneses e o casamento arranjado, ela mostra como são sufocantes para aqueles que cresceram em contextos menos tradicionais. É interessante, por exemplo, como os ângulos em torno dos personagens são mais fechados, reduzindo-os à pequena casa em Luton. Reprimidos e subjugados à situação, embora se mantenham firmes em sua resistência. 

À procura da voz 

Javed reúne várias características que o tornam o típico protagonista perdido de John Hughes (“Clube dos Cinco” e “Curtindo a Vida Adoidado”): virgem, solitário, poeta e tímido. Esses elementos, no entanto, maquiam sua verdadeira condição de não-pertencimento e, por isso, ir embora de Luton se torna a opção mais viável para se achar. A música de Springsteen opera o papel de descoberta de identidade de Javed e cria a ponte que o protagonista precisava para se integrar ao mundo, incluindo a própria família.  

Seu amadurecimento é contemplado em tela. Viveik Kalra, intérprete de Javed, sustenta esse processo de crescimento de maneira muito natural, jamais permitindo que o simples fato de seguir novos caminhos, de acordo com lições vindas de músicas, pareça algo forçado. A montagem fluida e ágil auxilia a percepção da catarse do protagonista em encontrar alguém que afirma tudo que ele não sabia que pensava. 

A Música da Minha Vida” é um filme simples com algumas soluções previsíveis, mas não deixa de perder seu encanto e contagiar quem gosta de música e narrativas que buscam nela bons argumentos para desenvolver histórias e incluir discussões pertinentes.