Que filme curioso é este A Vastidão da Noite, do diretor Andrew Patterson, disponível no Amazon Prime Video. Parece um episódio da clássica série Além da Imaginação (The Twilight Zone) em longa-metragem, colorido, e cheio de falatório, quase como uma obra de Richard Linklater (“Boyhood”). É um filme no qual o clima é mais importante que a história, e no qual se percebe um genuíno amor pelo gênero da ficção-científica e por histórias fantásticas. Dentro do filme, o ato de contar e ouvir histórias é o que move a trama e alimenta a narrativa, a ponto de se tornar praticamente o subtexto dela.

“A Vastidão da Noite” se passa nos anos 1950, na cidadezinha de Cayuga. No filme, acompanhamos dois jovens, a telefonista Fay (Sierra McCormick) e o DJ de rádio Everett (Jake Horowitz) durante uma noite. Os dois são bem nerds – os óculos grandes e interesse em tecnologia e futurismo denunciam. No começo da história, eles estão fascinados pelo gravador moderno que ela está testando. E conversam bastante sobre isso. Tipo, conversam MESMO. Basicamente quase toda a cidade está reunida num importante jogo de basquete, mas quando Fay recebe ligações estranhas e ouve um ruído incomum sendo transmitido, ela e Everett começam a investigar, escutam histórias de indivíduos que parecem saber o que está se passando e percebem que há algo nos céus desta noite, e que pode não ser deste planeta.

A conexão com Além da Imaginação é óbvia: logo na abertura do filme, vemos uma TV exibindo um programa de ficção-científica e o apresentador imita claramente a voz e a cadência de Rod Serling, apresentador e criador da clássica série. Cayuga, a cidade, era também o nome da produtora de Serling, que produziu a série. A certa altura de “A Vastidão da Noite”, ouvimos o nome da cidade próxima de Santa Mira – ambientação do clássico Vampiros de Almas (1956), de Don Siegel. O clima de paranoia e a presença do rádio imediatamente remetem à transmissão de Guerra dos Mundos realizada por Orson Welles e que deixou os Estados Unidos em pânico em 1938. Em alguns momentos, a tela da TV retorna e se torna uma moldura pela qual acompanhamos os eventos do filme, e A Vastidão da Noite se torna, por alguns momentos, um exemplar antigo e em preto-e-branco de ficção-científica televisiva.

CONVIDATIVOS MISTÉRIOS DA NOITE

É também um filme de planos longos: um com a Fay na sua mesa de telefonista no início se estende por vários minutos. A certa altura, a câmera sai pela porta do escritório dela e percorre a cidade, num plano-sequência – feito com ajustes digitais, claro – e a arbitrariedade do efeito provoca uma estranheza imediata no espectador. Essa estranheza também é amplificada pelo design de som preciso, pela trilha sonora espectral e ocasionalmente bela, e pela fotografia criativa de Miguel Ioann Littin Metz. Esteticamente, a fotografia lembra um pouco a dos filmes de David Fincher, mas com névoa – a presença de uma névoa quase constante nas cenas externas desperta imediatamente uma aura onírica em alguns momentos do filme.

Em 90 minutos, Patterson se preocupa em criar um clima com imagem e som. E embora esse clima seja mais importante que a história em si – que é simples e se desenvolve mais ou menos como qualquer espectador experiente do gênero ficção-científica espera – a própria narrativa apresenta o ato de contar e se ouvir uma história como algo importantíssimo. Dois dos melhores momentos de A Vastidão da Noite são monólogos, um ouvido pelo telefone e outro falado ao vivo por uma senhora estranha vivida pela atriz Gail Cronauer, cuja atuação é arrepiante. Nessas duas cenas, o filme transforma espectadores em ouvintes e faz o que o rádio consegue, estimulando a imaginação e amplificando ainda mais o clima da experiência. Pode-se extrair do filme a noção de que precisamos das histórias para compreender e dar sentido ao que vemos no mundo, e o fato dessas histórias não terem comprovação – algo ressonante no contexto atual de Fake News – até aumenta a relevância do longa.

Mas isso parece estar além do que os cineastas pretendiam com este filme. Na verdade, A Vastidão da Noite funciona num nível mais básico, explorando a noção de como a noite convida a mistérios, ao desconhecido e a comportamentos irracionais. É simples, como uma historinha contada ao redor da fogueira, e com um climão, mais estilo do que substância, mas às vezes isso basta. Com este filme, Andrew Patterson já entra na lista de diretores para se prestar atenção no futuro, e merece emprego dirigindo algum episódio na próxima temporada da nova The Twilight Zone, que aliás também está disponível no Prime Video… Ele parece ter nascido para o trabalho.

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