Durante minha época de editor do G1 Amazonas, recordo de um release da Polícia Civil sobre a prisão de um rapaz com mais de 20 anos. O crime? O furto de um celular. No fim do texto, como de praxe, informava onde o caso seria investigado e que o ‘infrator’ seria encaminhado para a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa. A mesma penitenciária superlotada onde, vez ou outra, explodia uma rebelião. Ele iria passar os dias ao lado de traficantes, estupradores, homicidas e integrantes de facção criminosa. Com tal medida, o dever da Segurança Pública do Estado do Amazonas estaria cumprido.

Selecionado para o Festival Olhar do Norte 2019, o curta maranhense “Aquarela” me fez recordar da história contada acima. Em pouco menos de 15 minutos, somos colocados diante dos efeitos da cultura do encarceramento em massa visto em todo Brasil. Dirigido e roteirizado pela dupla Thiago Kistenmacker e Al Danuzio, o filme mostra o drama de uma família exposta às ameaças de um líder de uma facção criminosa que deseja ter, a qualquer custo, a esposa de um presidiário. Desta forma, impõem-se sobre aquelas pessoas o temor da violência física, psicológica e do estupro.

A omissão do Estado é figura decisiva sobre aqueles personagens. Independente de não conhecermos a gravidade do crime cometido (ou não), o marido e pai de família está preso sem ter ido sequer a julgamento, algo básico dentro de uma sociedade com o mínimo de civilidade. ‘Bandido tem que tá preso mesmo’, ‘vai levar bandido para tua casa, então’ dirão os tolos, mas, duvido que uma pessoa de classe média alta ou da elite seria colocada na idêntica situação mesmo se fosse em caso de flagrante delito. Fora o aspecto de impossibilidade de qualquer chance de recuperação ali dentro visto os traumas a que são submetidos aquelas pessoas.

A PENA DOS INOCENTES

“Aquarela”, entretanto, expande o prisma ao mostrar um lado quase sempre esquecido nesta cultura brasileira da encarceração em massa: as famílias dos detentos. O roteiro mostra como a pena não é aplicada apenas ao preso, mas, se expande aos que estão ao lado dele. Seja na revista humilhante feita antes da entrada no presídio ou na forma como aquelas mulheres são tratadas como objetos sexuais do líder da facção, o Estado lava as mãos sendo conivente com tais abusos. Os trabalhos brilhantes das atrizes Luna Gandra e Rosa Ewerton Jara realçam ainda mais este sofrimento sem precisar dizer tantas palavras: a conexão entre as duas e o entendimento de ser mulher em uma sociedade machista e violenta como a nossa é suficiente.

Tal contexto em que a obra está inserida consegue ser tão eficiente e rica em analogias sociais que a subtrama envolvendo a filha do casal se perde no meio da história. Se a montagem em flashbacks sobre todo o desenrolar mostra-se precisa até o fato dramático ocorrido com a protagonista, a pequena tentativa de reviravolta embola o meio de campo e tira por breves instantes o foco de “Aquarela”.

Triste constatar que a realidade deste belo curta maranhense deva ganhar mais força com as políticas autoritárias do atual presidente Jair Bolsonaro. Se no mundo do discurso populista a segurança pública será melhor adotando uma cultura punitivista de prender e pronto, “Aquarela” simplesmente mostra que há muito mais fatores em jogo e os efeitos disso podem ser devastadores até para quem não é culpado de nada.