“Eu não vou desperdiçar minha chance”.
Existem processos que se aceleraram com a pandemia de Covid-19. Um deles – e diga-se de passagem muito bem-vindo – foi a inserção do Pro-Shot de Hamilton no Disney+. Para quem não está habituado, Pro-Shots são gravações de números teatrais que, quando reunidos, podem compor um filme. A Disney já havia divulgado que “Hamilton” entraria no streaming em 2021, porém, as pausas nas produções em andamento, fechamento de cinemas, entre outros fatores, ocasionaram na sua admissão recente.
Este é um dos musicais mais populares e premiados dos últimos anos. Em cartaz desde 2015, ele já entrou em turnê e tem alguns dos ingressos mais disputados e caros da Broadway. Para quem gosta e/ou quer conhecer a história norte-americana, é uma ótima oportunidade. “Hamilton” é uma verdadeira aula de história contada de forma atrativa e didática, sendo o personagem central considerado uma das figuras essenciais para a formação dos Estados Unidos como nação livre e independente. Sua importância é tamanha que ele é o rosto presente na nota de 10 dólares, no entanto, o trabalho feito por Miranda e Thomas Kail, diretor da produção, expande a visão que temos desse personagem.
Lin-Manuel Miranda, autor, compositor e protagonista da produção, inspirou-se na biografia de Alexander Hamilton, escrita por Ron Chernow, fazendo da adaptação extremamente cativante e envolvente. Isso se deve à abordagem escolhida pelo artista: o musical é inteiramente cantado, contendo apenas um ou dois diálogos falados, no entanto, diferente das tradicionais baladas românticas que consagraram o teatro-musical, há uma versatilidade sonora – a trilha é uma mistura de ritmos populares indo do rap ao jazz até chegar ao soul e R&B.
As composições possuem frases de efeito que são repetidas e relembradas por caracterizar os personagens que as entoam como “Hepless” para Eliza Schuyler (Phillipa So), “Satisfied” para Angelica Schuyler (Renee Elise Goldsberry) e “My Shot” para o protagonista. Tudo isso auxilia para que as canções fixem na mente do público, especialmente, após a exibição do musical. Mas nem só de ritmos populares “Hamilton” vive: há também baladas românticas e canções emocionantes como “One Last Time” que começa com um dueto R&B para a despedida de George Washington (Chris Jackson) da presidência e finaliza com um solo comovente. Curiosamente, essa canção também foi escolhida para a despedida de Barack Obama da Casa Branca.
REPRESENTATIVIDADE COMO POTÊNCIA POLÍTICA
A potência política de “Hamilton” se apresenta já na escolha da história ser contada por Aaron Burr (Leslie Odom Jr). Acompanhamos a perspectiva dele desse momento histórico e como sua caminhada com Hamilton foi alimentada por inveja, ciúmes e isenção. Em dado motivo da narrativa, Burr aconselha seu rival velado a “falar menos, sorrir mais”. E essa é a tônica desse antagonista: ele quer estar no meio da revolução, mas sem precisar sujar as mãos e sentir os golpes que essa escolha pode trazer.
Burr também é o responsável por apresentar Hamilton a seus amigos, que se tornariam seus parceiros de revolução: Lafayette (Daveed Diggs), Mulligan (Okieriete Onaodowan) e Laurens (Anthony Ramos). Um ponto interessante nessa construção é que a política não está presente apenas na história retratada, mas se configura, principalmente, nas entrelinhas e a traz para um contexto contemporâneo. Há uma música entoada por Diggs e Miranda em que eles entoam “Imigrantes, nós fazemos o trabalho” e são ovacionados pela plateia. Para além do que se viveu na construção norte-americana, essa também é a realidade em que estamos inseridos; fazer esse paralelo eleva o nível de sensibilidade e identificação da produção.
Diggs interpreta dois personagens franceses, enquanto Hamilton é caribenho. Esses detalhes são importantes porque há muita representatividade no musical. Pela história ser sempre contada pelo viés do “vencedor”, o que conhecemos geralmente é alinhado ao pensamento masculino-branco-cis-hétero. O que Miranda e Kail fazem é quebrar esse estereótipo e trazer para o palco homens e mulheres negros, latinos e com corpos longe da perfeição estética de Hollywood. Por mais estranho que isso soe no primeiro momento, enriquece ainda mais o contato com a obra. O próprio Lin-Manuel tem descendência latina.
“Hamilton” é um épico de 160 minutos que nos faz imergir na história sem tirar os pés da atualidade. É o tipo de produção que marca de diferentes formas cada oportunidade que temos de prestigiar, seja por seu cunho político, pelas músicas ou o carisma de seus intérpretes. Se não podemos ir a Broadway, ela veio até nós. Não desperdice a chance de prestigiá-lo.