Vivemos um momento bem diferente daquele do começo dos anos 1990, quando começaram a estourar na imprensa as denúncias de abuso sexual cometidos pelo astro pop Michael Jackson. Hoje se tem mais consciência de que esse tipo de crime está disseminado pela sociedade e é de difícil comprovação, por isso se deve dar mais atenção e crédito à palavra das vítimas.

Por isso mesmo, o documentário Leaving Neverland, da HBO, é importante: basicamente, ele dá espaço a duas vítimas – na época crianças – do cantor, e detalha o complexo processo psicológico pelo qual eles passaram junto com os abusos. O que fica ao final é uma triste história na qual taras sexuais, dinheiro, fama, amor genuíno, grandiosidade e esquisitice se misturam. Uma história que vale a pena ser retomada e discutida hoje, quase uma década após a morte de Jackson.

As duas vítimas são Wade Robson e James Safechuck e as histórias de ambos têm muito em comum. Entraram na órbita de Michael Jackson como fãs mirins no fim dos anos 1980. Tanto Robson quanto Safechuck – assim como seus familiares – passaram a conviver muito próximos do astro pop. Os dois foram abusados por anos por Rei do Pop sem se dar conta exatamente do que estava sendo infligido sobre eles. E ambos, quando jovens, defenderam o cantor das acusações de outros meninos nas décadas de 1990 e 2000, e até no julgamento de Jackson.

Ambas as histórias são contadas com detalhes por Robson, Safechuck e o diretor do documentário, Dan Reed. Este último tem plena consciência do poder da sua história, tanto que não enche Leaving Neverland de firulas cosméticas. Como documentário, ele é até bem conservador: vemos depoimentos dos dois personagens principais, de alguns dos seus familiares – a mãe de Safechuck é bem honesta, e o filme também deixa claro que as duas mães foram seduzidas por Jackson, seu mundo e seu dinheiro, tanto quanto os meninos – e também fotos, filmagens de arquivo e notícias da época. E os depoimentos sobre os abusos são crus, emocionais e bem descritivos – alguns momentos realmente provocam revolta e asco no espectador. De vez em quando, uma trilha sonora intrusiva atrapalha um pouco o documentário, cuja sobriedade é sua maior força. Mas isso não chega a comprometer gravemente o filme.

Leaving Neverland tem quatro horas de duração, divididas em duas partes. A primeira detalha como Robson e Safechuck se aproximaram do astro pop e a convivência entre eles. A ironia hoje chega a ser cruel quando vemos, por exemplo, Robson dançando junto com o cantor na turnê do álbum Bad, enquanto o grande público do show canta “Michael Jackson é bad”… A segunda parte é quando o escândalo explode: vemos as denúncias e o posterior julgamento de Michael Jackson, sua morte em 2009 e como os dois homens vieram a lidar com as consequências psicológicas dos seus abusos apenas na idade adulta. Jackson já não pode mais se defender e o documentário, sem dúvidas, pede que agora acreditemos em pessoas que, na época, defenderam o astro. Porém, todo o processo pelo qual eles passaram torna críveis as suas histórias e o fato de escolherem este momento para, finalmente, exporem a sua visão dos eventos.

Isso reflete a importância de Leaving Neverland para o nosso momento histórico. Agora, comportamentos como o de Jackson são mais difíceis de esconder, denúncias como essas carregam mais impacto e peso, as vítimas, ao menos, possuem mais instrumentos e possibilidades para serem ouvidas. Como obra audiovisual, Leaving Neverland é até meio careta e talvez um pouco mais longo do que precisava ser. Mas só de ouvirmos Safechuck afirmar que ele e outras vítimas em potencial de abusos “permanecem crianças, só ficam mais velhas”… Esse momento tem um impacto muito grande no espectador.

Momentos como este e a mera força da história fazem com que Leaving Neverland adquira uma característica que transcende jornalismo, fofoca e sensacionalismo. De um mero documentário sobre um fato histórico, ele se torna também uma forma de não se esquecer uma história triste e, infelizmente, muito humana.