À primeira vista, “Lucia Cheia de Graça” parece ser uma produção divertida e aberta a vários caminhos, entretanto, o filme de Gianni Zanasi mostra-se frustrante e genérico.  Estrelado por Alba Rohrwacher, a trama acompanha a personagem-título, uma mãe solteira que vive em dificuldades financeiras, afetivas e sociais. Em um de seus trabalhos como topógrafa, ela percebe que o terreno estudado sofreu muitas alterações desde as últimas medições, porém, por pressão do chefe, ela deixa passar o fato nos registros. Essa situação poderia ser corriqueira, se isso não lhe rendesse visões de Nossa Senhora, que veio impedir que o projeto siga em frente.

Com esta premissa, “Lucia Cheia de Graça” poderia seguir por caminhos distintos e interessantes como a fé na correria contemporânea ou o significado de ser religioso na pós-modernidade. Dentro desse quadro, sua linguagem também poderia ser melhor tecida: uma comédia familiar ou um drama religioso. Porém, entre tantas vertentes, nenhuma é escolhida: Zanasi patina entre todas elas e não consegue ser satisfatório em nenhuma.

Santo versus Profano

Até antes da aparição da figura religiosa, o roteiro parece meio perdido entre as incongruências da vida de Lucia e sua busca por consertar o que acredita ser disfuncional em sua existência. Mas engana-se quem possa acreditar que as visões de Nossa Senhora melhorem a condução da trama; pelo contrário, o que antes soava como humor, torna-se sem nexo, infantil e um tanto herege.

O humor se propõe a partir da junção entre o terreno e o etéreo, o sacro e o profano. A protagonista e a personagem religiosa são construídas com aspectos diferentes do que o senso comum ofertaria a elas. Enquanto o medo de Lucia a afasta da adoração e do comportamento que seria previsto nessa situação, a Santa não hesita em atacá-la fisicamente quando há necessidade. Essa troca entre elas promove algumas risadas, mas a relação se mantém nisso, sem aprofundar as questões levantadas pela aparição nem tampouco desenvolver as personagens.

O desequilíbrio narrativo

Tudo isso acaba por desequilibrar o tom do filme, nunca encontrando um ritmo narrativo e um fim ao qual desembocar. E isso só piora quando o terceiro ato decide relegar a Lucia à imagem de mulher louca (devido às visões) e entrega a solução de seus problemas e da resolução do filme a seu ex-companheiro. Restando à personagem a dependência de um homem que a abandonou e ressurgiu do nada “para salvar o dia”.

Somado a isso, está a dificuldade do roteiro em conectar as tramas paralelas. “Lucia Cheia de Graça” se debruça em arranhar críticas ao machismo, à moral religiosa e a diferença entre gerações, mas nunca se aprofunda em nenhuma das temáticas. Nem mesmo a aparição de Nossa Senhora, o argumento narrativo condutor, consegue encontrar espaço para desenvolver-se. Os motivos da aparição nunca ficam muito claros e nem a presença da santidade se mostra necessária para enriquecer alguma discussão (a não ser para alimentar o velho clichê machista da mulher louca), nem mesmo as que poderiam se desencadear a partir disto como o cristianismo contemporâneo.

Um sopro de esperança

No mar de tantas irregularidades, o que consegue tornar funcional a projeção é a atuação de Alba Rohwacher. Reconhecida em festivais importantes como o de Veneza e Berlim, ela é um dos maiores talentos da atual geração. Aqui, ela oferta equilíbrio à personagem, não permitindo que seja ridícula ou se torne uma paródia, mas possibilitando certa magia ao transitar entre o medo e a coragem, a crença e a descrença. Há momentos em que sua entrega consegue nos fazer enxergar o potencial dramático que a obra poderia ter.

É realmente uma pena que com tanta potencialidade a ser explorada ”Lucia Cheia de Graça” se perca em um mar de irregularidades e caminhos desencontrados.

‘A Paixão Segundo G.H’: respeito excessivo a Clarice empalidece filme

Mesmo com a carreira consolidada na televisão – dirigiu séries e novelas - admiro a coragem de Luiz Fernando Carvalho em querer se desafiar como diretor de cinema ao adaptar obras literárias que são consideradas intransponíveis ou impossíveis de serem realizadas para...

‘La Chimera’: a Itália como lugar de impossibilidade e contradição

Alice Rohrwacher tem um cinema muito pontual. A diretora, oriunda do interior da Toscana, costuma nos transportar para esta Itália que parece carregar consigo: bucólica, rural, encantadora e mágica. Fez isso em “As Maravilhas”, “Feliz como Lázaro” e até mesmo nos...

‘Late Night With the Devil’: preso nas engrenagens do found footage

A mais recente adição ao filão do found footage é este "Late Night With the Devil". Claramente inspirado pelo clássico britânico do gênero, "Ghostwatch", o filme dos irmãos Cameron e Colin Cairnes, dupla australiana trabalhando no horror independente desde a última...

‘Rebel Moon – Parte 2’: desastre com assinatura de Zack Snyder

A pior coisa que pode acontecer com qualquer artista – e isso inclui diretores de cinema – é acreditar no próprio hype que criam ao seu redor – isso, claro, na minha opinião. Com o perdão da expressão, quando o artista começa a gostar do cheiro dos próprios peidos, aí...

‘Meu nome era Eileen’: atrizes brilham em filme que não decola

Enquanto assistia “Meu nome era Eileen”, tentava fazer várias conexões sobre o que o filme de William Oldroyd (“Lady Macbeth”) se tratava. Entre enigmas, suspense, desejo e obsessão, a verdade é que o grande trunfo da trama se concentra na dupla formada por Thomasin...

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...