Nova produção do diretor britânico Peter Strickland, “Na Fábrica” conta a bizarra história de um vestido com instinto assassino. Você pode ler isso de novo. Depois de aclamadas passagens pelos festivais de Londres e Toronto em 2018 e uma ótima recepção no Festival Internacional de Cinema de Karlovy Vary 2019, o atual mestre britânico da estranheza cumpre a promessa dos seus trabalhos anteriores com seu melhor e mais direto filme até hoje.
Bebendo da fonte dos giallos italianos, das sitcoms britânicas dos anos 1970 e até mesmo do clássico conto “Os Sapatinhos Vermelhos”, do escritor Hans Christian Andersen, o protagonista aqui é um vestido elegantemente descrito como sendo “vermelho artéria” e exposto em uma loja de departamentos. Com a estranha capacidade de ser do tamanho exato de qualquer pessoa que o experimenta, a peça passa de proprietário para proprietário, destruindo suas vidas.
No começo, a história é focada em Sheila (Marianne Jean-Baptiste), uma bancária divorciada buscando algum tipo de diversão na vida. Com a ajuda da vendedora mais estranha do cinema recente (Fatma Mohamed, uma parceira recorrente do diretor), ela compra o vestido para se sentir melhor consigo mesma e chamar a atenção dos homens que encontra através de anúncios de namoro. Aos poucos, o fato de que a peça de roupa tem vontade própria fica cada vez mais claro e a trama, mais sangrenta.
Em alguns momentos, é fácil esquecer quão estranha é essa proposta por conta da beleza da produção. Trabalhando pela primeira vez com a diretora de fotografia Ari Wegner, Peter Strickland estiliza cada frame até o limite, criando uma versão exuberante e colorida dos subúrbios britânicos que não poderia ser confundida com o trabalho de qualquer outro artista.
SEXO E CRÍTICAS AO CAPITALISMO
Como um bom filme do cineasta, há também um potente subtexto sexual. Parte da decisão de Sheila em comprar o vestido vem da frustração dela em notar que todos ao redor dela parecem estar com o sexo em dia. Os funcionários da loja de departamentos se entregam a rituais estranhos que envolvem muito roleplay com os manequins do lugar, que, por acaso, têm as partes baixas anatomicamente corretas.
Tudo isso é usado no roteiro, também escrito pelo diretor, para criar uma comédia muito sombria que aponta o dedo para as necessidades básicas que nos levam à nossa desgraça e também para o capitalismo – o sistema que depende da nossa atração por objetos de desejo para continuar existindo. Ao contrário de outro filme exibido em Karlovy Vary este ano que tenta a mesma crítica – “Os Mortos Não Morrem”, de Jim Jarmusch – o ataque de Strickland funciona porque vincula com sucesso o consumismo com nossas deficiências psicológicas.
É muito chocante quando, depois de desenvolver grande parte da história com Sheila no centro, o filme a deixa para trás numa reviravolta, passando seu foco para Reg (Leo Bill) e Babs (Hayley Squires), um casal de noivos que entra em contato com o vestido depois. Ainda assim, decisões como essa são uma demonstração de confiança de um dos diretores mais originais de sua geração. Um pastiche de diversos de gênero com um mórbido senso de humor, “Na Fábrica” fornece o tipo raro de choques e emoções que o dinheiro sozinho não pode comprar.
*O jornalista viajou para o Festival de Karlovy Vary como parte da equipe do GoCritic!, programa de fomento de jovens críticos do site Cineuropa.