Narcos, a nova série do Netflix em parceria com a produtora francesa Gaumont, se inicia com uma citação sobre o realismo fantástico e como esse gênero literário, cujo maior expoente foi o escritor Gabriel Garcia Márquez, nasceu na Colômbia. Parece algo estranho de se mencionar num seriado que vai se dedicar a mostrar a guerra contra as drogas ocorrida durante os anos 1980 e boa parte dos 1990, na qual Colômbia e Estados Unidos se uniram contra um inimigo comum, o cartel de Medelín, comandado pelo famoso Pablo Escobar. Mas, com o tempo, e com o acúmulo de situações absurdas espalhadas pelos dez episódios que compõem a primeira temporada, essa relação entre a história real e a fantasia, entre o fantástico e o documentado, começa a ficar cada vez mais clara.

A série, criada por Chris Brancato, Carlo Bernard e Doug Miró, e que tem como um dos seus produtores-executivos o cineasta brasileiro José Padilha, tem um toque de Os Bons Companheiros (1990). Apesar da violência e do assunto sério, o tom do programa é movimentado e recheado de um humor cínico. Conhecemos a história por meio da narração do agente do Departamento Anti-Drogas americano Steve Murphy, interpretado por Boyd Holbrook. Murphy é quem nos conta a história do envolvimento americano na guerra contra as drogas e sobre a ascensão de Escobar, vivido por Wagner Moura. A ascensão do traficante, aliás, é tão rápida – é contada basicamente logo no primeiro episódio – quanto surpreendente. Escobar e seus asseclas, no final dos anos 1970, estabelecem um império de cocaína capaz de render bilhões de dólares ao ano, e que tinha nos EUA o maior mercado consumidor, com Miami sendo a porta de entrada.

Murphy e a série nos apresentam a um verdadeiro “balaio de gatos” recheado com drogas, sexo, corrupção e violência. O agente é um dos consultores do programa e sua foto aparece na bela sequência de abertura, assim como a de Pablo Escobar. Essas fotos e outras imagens de arquivo que aparecem ao longo dos episódios ajudam o espectador a acreditar na trama descrita diante de seus olhos. Afinal, durante a temporada vemos como o maior traficante de drogas do mundo chegou perto de alcançar seu objetivo de se tornar Presidente da Colômbia, e também vemos os “heróis” da história fazendo coisas tão questionáveis do ponto de vista moral quanto os traficantes e assassinos que combatiam. E os fatos absurdos só se acumulam, impressionando como só as histórias reais conseguem fazer.

Apesar da grande quantidade de exposição logo no início, ela é compensada por um mergulho rápido na ação e ao longo dos episódios Narcos se torna um programa, com o perdão do trocadilho, “viciante”. O ritmo ágil dos episódios e o surpreendente humor da produção seduzem, e o fato do Netflix disponibilizar toda a temporada de uma só vez, como de praxe, ajuda a estabelecer esse vício.

Contribuem para esse vício a condução da trama e o cuidado técnico da produção: os figurinos reproduzem a moda colorida e estranha das décadas de 1970 e 1980 e a fotografia de Lula Carvalho é uma atração em si, adotando um estilo bem naturalista e sem muitas cores fortes, o que só ressalta o absurdo dos fatos vistos na trama, e guardando as cores e sua intensidade para momentos especiais. Além de Padilha, outros nomes de peso dirigem episódios desta temporada, como o conhecido diretor de fotografia mexicano Guillermo Navarro e o brasileiro Fernando Coimbra, de O Lobo Atrás da Porta (2014), que comanda os melhores capítulos, o sétimo e o oitavo. A equipe filma ótimas cenas de ação, como a perseguição de um helicóptero a um carro e outra a pé, pelas ruelas de uma favela. E a atenção aos detalhes da época – os carros, os bigodes dos três atores principais, o retrato de “santo” de Escobar pendurado displicentemente numa parede de uma casa humilde – ajudam ainda mais a imersão do publico num período e numa realidade que causa impacto hoje. De fato, uma das maiores perguntas na mente do telespectador enquanto assiste ao programa é: “as coisas realmente eram desse jeito?”.

As imagens de arquivo intercaladas à ação dos episódios e à narração cínica do agente Murphy comprovam que sim. Narcos contrapõe o tempo todo o mito do narcotraficante impiedoso e sanguinário, e do policial valente, ambos se vendo como “heróis” das suas histórias – e para demonstrar a forma como Escobar se percebia, a série faz um curioso uso da espada do ícone latino-americano Simon Bolívar – com a realidade de uma época complicada. Era um período no qual havia um cowboy na Casa Branca, Reagan, cujo combate ao comunismo teve sérias influências sobre as políticas da América Latina. A série também aborda o problema dessa guerra: como é possível, até mesmo para o maior e mais rico país do mundo, competir com a indústria do narcotráfico? Longe do proselitismo, Narcos aponta fatos incríveis e números através do agente Murphy, e deixa o espectador tirar suas próprias conclusões.

De fato, é até uma pena que Narcos, por melhor que seja, acabe sendo muito voltado à trama – é uma grande trama, claro, mas ainda assim poderia funcionar melhor com personagens à altura. Os dois policiais não são muito desenvolvidos. Holbrook é mais carismático narrando do que fazendo algo em frente à câmera e Pedro Pascal, revelado pela sua eletrizante atuação na quarta temporada de Game of Thrones, também não é muito explorado no papel do agente Javier Peña – a subtrama do envolvimento dele com a guerrilheira comunista é resolvida de forma apressada e sem consequências.

Escobar é mais desenvolvido, e Moura o retrata como um homem de família amoroso, porém capaz de matar e mandar matar. Ao ver frustradas suas ambições políticas, o Escobar de Moura se torna uma figura melancólica, sempre se movimentando devagar, mas capaz de intimidar apenas com um olhar. Barrigudo e intenso, o ator cria mais um grande personagem e nos faz compreender um homem perigoso justamente por acreditar que suas ambições são, a princípio, benéficas. Não à toa, uma das frases dele denuncia seu caráter: “Muitos gênios foram rotulados como loucos”. O Escobar do seriado é um sujeito que se acha herói e não compreende porque as pessoas não o deixam ser essa figura heroica. E, depois de frustrado, resolve se vingar.

É uma série com tons de cinza – é curioso o paralelo sutil que se estabelece entre Murphy e Escobar no oitavo episódio, quando o agente começa a formar a sua própria família. Murphy diz que “o bem e o mal são relativos”, e no mundo de cabeça para baixo da guerra contra as drogas, os heróis usam outras pessoas para seus benefícios e os vilões causam atos inacreditáveis para se proteger. Há momentos na temporada em que o telespectador vai realmente coçar a cabeça e querer correr para o Google, a fim de descobrir se o evento mostrado na tela realmente aconteceu. É uma tentativa da arte de encontrar sentido numa história real que não fazia sentido. E nessa história não havia policia e ladrão. Apenas tipos diferentes de bandidos.