Há 51 anos atrás, um festival de música sem maiores pretensões além de vender ingressos e reunir o creme do que era jovem e moderno ganhou as proporções de um evento transformador na história.

Woodstock, imortalizado em filme em Woodstock: Três Dias de Paz, Amor e Música (1970), de Michael Wadleigh, foi o emblema de uma mudança profunda em curso: ali estava uma comunidade majoritariamente jovem, surgida em torno de ideais comuns de fraternidade, amparo mútuo e recusa aos valores repressivos das gerações mais velhas, e que tinha na música, mais ainda do que nas drogas, a sua ferramenta particular de catarse. Eram os hippies, denominação que nasceu pejorativa, mas logo passou a batizar aquela turma.

Ecos do que se viu ali ganharam o mundo através do cinema e dos discos, chegando inclusive ao Brasil do regime militar. E inspiraram a realização de um festival de música que, mais do que transplantar o clima de Woodstock para cá, seria a maior celebração coletiva que a música brasileira já teve: o Festival de Águas Claras, que teve quatro edições entre 1975 e 1984. Esse é o tema de O Barato de Iacanga, documentário de Thiago Mattar que chegou à Netflix em dezembro, após uma passagem vitoriosa pela mostra In-Edit.

DE APOKALYPSIS A GIL: A EFERVESCÊNCIA DA MÚSICA NACIONAL 

O Barato nasceu da obsessão de Mattar com o festival. Foram dez anos procurando todas as imagens de arquivo, todas as reportagens de jornais da época e todos os personagens relevantes ainda vivos para reconstruir como, afinal, se conseguiu fazer um festival de música de grande repercussão numa cidadezinha do interior de São Paulo, em plena ditadura.

Duas cabeças, mais do que todas, foram fundamentais nesse processo: a de Antônio Checchin Júnior, o Leivinha, idealizador do festival; e a de Cláudio Prado, agitador cultural que esteve presente ao último dos grandes festivais de rock originais – o da Ilha de Wight, na Inglaterra, em 1970 – e encorajou Leivinha a tocar sua epifania adiante. Os dois acenderam a pólvora do que seria o primeiro festival de rock brasileiro, aos moldes dos seus inspiradores americanos e ingleses, no município de Iacanga, interior de São Paulo.

Infelizmente, esse evento pioneiro, devido à total despretensão com que foi feito, e à descrença, por seus organizadores, quanto às suas chances de sucesso – que, vale dizer, foi um marco para sua época e lugar – fez com que não fossem registrados, ou se deixassem perder, vários de seus momentos mais importantes. Nessa primeira parte, Mattar dinamiza as imagens quase sempre estáticas do festival com músicas de bandas que participaram dessa primeira edição – a maioria grupos quase esquecidos, como Apokalypsis, Rock da Mortalha e A Chave Universal, ao lado de outros mais cult, como O Terço e O Som Nosso de Cada Dia –, registros em áudio que restaram daqueles dias, e as lembranças de seus principais envolvidos.

Tivesse ficado aí – o que, como se vê no filme, quase aconteceu –, e o Águas Claras seria um evento importante, mas pouco mais do que uma curiosidade histórica, um mini-Woodstock nacional sem maiores consequências, assim como o festival Som, Sol & Surf, realizado em Saquarema, RJ, no ano seguinte (e tema de outro documentário delicioso: Som, Sol & Surf Saquarema, lançado ano passado). Só que a ideia do evento não esmoreceu na cabeça de Leivinha e seus colaboradores. Ao longo dos seis anos seguintes, aquela centelha amadureceu, para se tornar um animal diferente, e muito melhor: não mais um festival apenas de rock, mas uma celebração da riqueza e diversidade da música brasileira.

 A segunda e a terceira edições do Águas Claras, realizadas em 1981 e 83, são o centro do filme de Thiago Mattar, e por boas razões: a estrutura da festa cresceu enormemente e se profissionalizou; ambos foram amplamente televisionados; e seu cast hoje em dia faria marejar os olhos de qualquer admirador da MPB. Por ali, passam, durante boa parte do filme, Moraes Moreira, Raul Seixas, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Gilberto Gil, Paulinho Boca de Cantor, Luiz Gonzaga, Sá & Guarabyra, Itamar Assumpção, Jards Macalé, Gonzaguinha, Walter Franco, Sandra de Sá, Erasmo Carlos, Alceu Valença…

ACERTO DO COMEÇO AO FIM

A ênfase dada por Mattar a essa diversidade, ao reconhecê-la como a maior força do festival, mostra a lucidez de sua construção narrativa. São tantas imagens e histórias fortes – Hermeto deixando o espetáculo de lado, para se entregar a uma longa improvisação na flauta; Gismonti emocionado com a recepção da plateia a seu jazz instrumental; a versão arrepiante de Gil, só com voz e violão, de “Refazenda”; a figura enlouquecida de Alceu Valença no palco, deixando o público em êxtase – que o diretor, sensatamente, apenas as deixa falar por si.

Ah, e o clímax, com o momento sublime que é a participação de João Gilberto, a maior surpresa do festival – notoriamente recluso, perfeccionista e de difícil convivência, o cantor quase não fez shows no Brasil desde a sua volta ao país, em 1980, donde seria razoável supor que nada lhe seria mais alienígena do que um festival de música a céu aberto – cantando “Wave” para uma plateia absolutamente hipnotizada.

O Barato de Iacanga, ao reconstruir a ascensão e queda de um festival movido pelo amor à música, não aos negócios – um vestígio daquele ideal hippie –, capaz de se materializar no país num momento tão sombrio de sua história, e de mostrar a força de uma programação movida exclusivamente à música brasileira, é um documento muito importante para os fãs de música e boas histórias. Um reencontro amoroso para seus participantes, a conclusão de um ideal quase fanático para seu diretor, e uma revelação para os que não participaram daqueles acontecimentos, o filme é um acerto do começo ao fim.– –

Lembrei de outro documentário que vi recentemente, e sobre o qual também escrevi para o Cine Set: o elefantino e cheio de vento Rolling Thunder Revue, de Martin Scorsese (!), sobre a mítica turnê de mesmo nome de Bob Dylan, e as qualidades de Iacanga só fizeram crescer: a organização, os artistas participantes, os responsáveis pelos registros, os cidadãos de Iacanga, todos colaboram para fazer uma evocação vívida desse momento tão importante. Como Eduardo Coutinho, a maior referência do documentário brasileiro, ensinou através de sua filmografia, a maior qualidade em um trabalho do gênero talvez não seja possibilitar ver, mas sim ouvir, o que esses eventos e pessoas têm a nos dizer. O Barato de Iacanga resgata as vozes do Festival de Águas Claras para nós.

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