Atualmente o cinema espanhol de suspense tem dominado a Netflix. O Guardião Invisível, Calibre, Perfeitos Desconhecidos, Contratempo, Durante a Tormenta e o mais recente sucesso do streaming, O Poço, apresentaram narrativas misteriosas e psicológicas para seduzir o espectador e deixá-lo inquieto roendo as unhas para decifrar seus enigmas.

E quando se junta ao estilo de suspense espanhol, um dos astros (Pedro Alonso) da série espanhola de sucesso também da plataforma, La Casa de Papel, a esperança era que o resultado fosse bastante promissor. O Silêncio do Pântano tinha tudo para ser assim, mas acaba sendo um ponto destoante da curva e diferente dos outros exemplares espanhóis citados, o seu suspense psicológico nunca sai da esfera rasa na construção do seu thriller de gato e rato. Falta uma profundidade e nuance maior para dar escopo as ambiguidades morais que o seu texto propõe.

Em Silêncio, o público acompanha Q (Alonso) um escritor de livros policiais que leva uma vida paralela como serial-killer, buscando nos seus assassinatos, inspiração para as suas histórias, além de saciar sua compulsão por matar. A próxima vítima que servirá de inspiração para o novo livro é Ferrán Carretero (José Ángel Egido), um ex-ministro envolvido em um caso de corrupção em Valência. Enquanto Q começa a seguir os passos de Férran, acompanhamos uma trama paralela relacionada ao tráfico de drogas comandada pelo matador de aluguel Falconetti (Nacho Fresneda) que mantém negócios com o ex-ministro, situação que interferirá nos planos de Q.

Premissa interessante abandonada no meio do caminho

Hitchcock, o gênio mor do suspense clássico, sempre ensinou que o suspense de qualidade ocorre quando o artifício de retardar a ação em um momento crucial da narrativa é fundamental para manipular no espectador uma expectativa angustiante dos acontecimentos que virão a seguir. Em O Silêncio do Pântano, o diretor estreante Marc Vigil retarda isso a um ad eternum, o que produz um filme sem ritmo e faz a trama perder o seu real sentido e força.

O início do longa-metragem é até promissor. Vigil cria uma atmosfera intrigante com o uso de uma câmera e trilha sonora hitchcockiana para criar uma áurea misteriosa que combina com o enredo que entrelaça a fronteira entre ficção e realidade. O fato do escritor de Alonso não ter um nome próprio e ser conhecido como Q deixa a sensação do filme brincar com a mente do espectador, para que este duvide se o que vê é algo real ou tudo não passa de uma história literária imaginada pelo escritor.

Aqui a boa montagem de Josu Martínez – o único recurso fílmico que mantém a sua regularidade do início até o fim – mistura entre os planos, o que é real e irreal, manipulando o público em relação aos segredos até ali construídos. A edição neste momento, se revela eficaz principalmente no monólogo de Q nos primeiros minutos, quando ele dá o sentido metafórico para o pântano que dá o título do filme, situado sobre a cidade de Valência na Espanha, enquanto sua câmera passeia para mostrar os mais variados atores que compõe aquela casta social.

Essas boas intenções de início, aos poucos vão perdendo foco em relação a construção da sua narrativa. O filme se torna confuso ao misturar corrupção política, suspense, sociopatia, ganância e tráfico de drogas, sem dar profundidade a qualquer uma delas. Para completar, as próprias atitudes e as relações entre Q, Carretero e Falconetti são dispersas, sem um porquê de as coisas estarem acontecendo entre eles ou pelo menos em propor um estudo dos seus protagonistas, dando forma e camadas às suas motivações.

Enquanto, o escritor é praticamente esquecido na metade do filme (fica quase sem dar as caras por uns 20 minutos), a trama política de Carretero é praticamente deixada de lado, sobrando para o matador de aluguel o protagonismo sem que o roteiro consiga explorar muito bem seus atos violentos – uma pena que isso aconteça, afinal Falconetti entre os personagens do filme é o único que ganha um estofo dramático em relação ao seu passado para que o público compreenda suas motivações.

A verdade é que a direção de Vigil e o roteiro dos estreantes Carlos de Pando e Sara Antuna mergulham tanto no aspecto fantasioso da sua história, que acabam se perdendo nela, sem conseguirem conciliar a trama principal de Q com as subtramas dos demais personagens que giram a sua volta. A impressão é que ao trazer o suspense para o campo da ambiguidade moral das causas e consequência das ações dos seus protagonistas, o trio de realizadores em momento nenhum dá uma complexidade consistente a ela, ficando no brejo de boas ideias enterradas em um pântano onde o que reina é a falta de criatividade e a desorganização.

Ainda que nunca tenha assistido La Casa de Papel para verificar o talento serial-killer de Pedro Alonso, em Silêncio o seu sociopata entra mudo e sai calado com o ator se resumindo a fazer caras, bocas e olhares. Por isso, o grande destaque do longa-metragem é Nacho Fresneda que com sua atuação assustadora, consegue construir os momentos tensos e que injetam violência e ambiguidade as cenas que seu Falconetti aparece.

Uma pena que O Silêncio do Pântano não siga o mesmo caminho de sucesso de outras produções espanholas de suspense na grade da Netflix, citadas no início desta crítica. A mistura entre ficção e realidade fica restrita a um suspense que ao tentar ser grandioso, morre na falta de substância. Como a maioria dos pântanos, começa e termina sem ir a lugar nenhum.

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