Talvez a maior polêmica de 2019 no mundo do cinema tenha sido a fala de Martin Scorsese sobre os filmes do Marvel Studios – leia-se, aquela história de que as produções Marvel “não são cinema”. Pessoalmente, não concordo; mas algumas semanas depois Scorsese detalhou melhor suas ideias num artigo escrito para o New York Times. Ali, ele escreveu coisas muito difíceis de refutar, sobre a noção de que filmes de franquia não oferecem risco, porque eles são sempre a mesma coisa, e o risco é um ingrediente fundamental para o processo de criação artística. Quando ele fala, nós abaixamos as orelhas.

As ideias de Scorsese me voltaram à mente durante a sessão de Star Wars: A Ascensão Skywalker, novo capítulo da saga espacial no qual o diretor J. J. Abrams retorna o comando – ele dirigiu O Despertar da Força (2015), que lançou esta nova trilogia Star Wars – para encerrar a história da família Skywalker. Entre Despertar e este Ascensão, o cineasta Rian Johnson comandou o capítulo intermediário, Os Últimos Jedi (2017).

É uma responsabilidade e tanto, e infelizmente além das capacidades de Abrams. Muita coisa acontece em Star Wars: A Ascensão Skywalker, mas o ritmo frenético apenas está lá para tentar disfarçar o fato de que, na verdade, pouco acontece, e a maior parte desse pouco nós já vimos antes, e melhor, em capítulos anteriores da franquia. É um filme de correria e efeitos visuais, quase sem profundidade – um claro paralelo com O Retorno de Jedi (1983), que encerrou a trilogia original, mas ainda mais raso. Despertar era um filme divertido e que apelou sem pudor para a nostalgia ao se basear na estrutura do primeiro Star Wars, lançado lá nos anos 1970 por George Lucas. Mas… de novo o mesmo truque? Ao repetir mais nostalgia e ao se apoiar no famigerado fanservice, Abrams, como diretor e co-roteirista – o parceiro de crime de Abrams no roteiro é Chris Terrio, que roteirizou outras pérolas recentes como Batman vs. Superman (2016) e Liga da Justiça (2017) – cria um filme cheio de som e fúria, que não significam nada.

Percebe-se que Terrio e Abrams buscaram, em Ascensão, inspiração nos serials e filmes B antigos que por sua vez inspiraram Lucas. Mas isso justifica o roteiro preguiçoso? Bem, logo no início do filme, volta o super-vilão Imperador Palpatine (Ian McDiarmid), julgado morto ao final de O Retorno de Jedi. Por que ele voltou? Porque sim. A general Leia (a falecida, mas bem-vinda Carrie Fisher, participa do filme através de momentos deletados dos longas anteriores, numa boa e tocante costura) e o herói Poe (Oscar Isaac) até trocam o impagável diálogo: “Ele manipulou tudo! Desde o começo! Das sombras…”. A volta de Palpatine leva os heróis Rey (Daisy Ridley), Finn (John Boyega) e Poe numa busca por um “McGuffin” para salvar a galáxia de uma conveniente e poderosa frota inimiga, enquanto são perseguidos por Kylo Ren (Adam Driver).

MENTALIDADE FAN SERVICE

Durante a busca deles, Star Wars: A Ascensão Skywalker aproveita várias oportunidades para ignorar ou modificar coisas estabelecidas no filme anterior. E aí, caro leitor, chegamos ao cerne da questão… Já aviso logo: pessoalmente, gosto muito de Os Últimos Jedi. Considero, fácil, o melhor filme Star Wars desde O Império Contra-Ataca (1980). Se você o odeia, acha que ele jogou a saga no lixo, ou o considera o pior filme já feito na história do cinema, melhor parar de ler aqui.

Então volto a Scorsese… Os Últimos Jedi não era “a mesma coisa de sempre”. Rian Johnson encarou o risco de questionar o mito Star Wars, mas, em seguida, reforçava-o, e às suas características. Johnson demonstrou compreender a essência humana do monomito tão bem ou até melhor que Lucas. Mas, na mentalidade de fanservice de hoje, quando muita gente vai ver um filme esperando serem servidas, tal e qual num restaurante, boa parte dos fãs da saga rejeitou o filme e sua visão. Star Wars: A Ascensão Skywalker faz de tudo para minimizar ou até mesmo “corrigir” o que Johnson fez, o que escancara o desrespeito para com o diretor, a falta de coesão e de definição gerais desta nova trilogia, e o desespero de Abrams em “dar aos fãs o que eles querem”, ou seja, correria, efeitos sonoros e embates tediosos de sabres de luz.

Ora, para quê trazer de volta o Lando Calrissian (Billy Dee Williams), mesmo sem lhe dar função na trama? Porque sim, é fanservice e o ator topou. Por que colocar tanto no escanteio a Rose? A pobre Kelly Marie Tran tem uns três minutos de tempo de tela, se tanto. Para quê redefinir a linhagem da heroína Rey e escolher, dentre todas as opções para a sua ascendência, a mais idiota possível? Ora, porque sim, para Abrams e o pessoal que cuida da franquia hoje, Star Wars é uma novela mexicana e a linhagem de alguém, sua nobreza, seu “sangue”, importam sim, por mais que um personagem a certa altura de Ascensão diga o contrário.

ANTI-‘OS ÚLTIMOS JEDI’

O que sobra é filmar a confusão, e Abrams é bom nisso. As cenas são estruturadas para serem rápidas e agitadas, mantendo tudo em movimento, e são bem filmadas. Os heróis se metem em enrascadas com frequência, o clima esquenta quando Rey e Kylo se enfrentam, e os atores possuem química entre si e parecem estar se divertindo a valer. Porém, desta vez, ao contrário dos filmes anteriores de Abrams – Despertar e até seus Star Treks – o todo é sacrificado em nome das partes, e o filme começa a desabar lá pela metade, quando a coisa toda começa a ficar meio chata.

Star Wars: A Ascensão Skywalker, no fim das contas, não chega a ser realmente ruim, por pouco. Mas é um filme inegavelmente medroso, no qual seu diretor, escaldado pela recepção do longa anterior, em nenhum momento foge da sua zona de conforto pessoal ou da zona de conforto da franquia. Os arcos dramáticos são mal costurados (Dark-Rey? O que o Kylo quer desta vez?), a trama é muito sem-vergonha (Palpatine ficou esperando décadas lá com a sua frota sem fazer nada?), e o fato do filme buscar a altos custos ser o anti-Últimos Jedi chega a ser até engraçado. Não há risco. É exatamente a isso que Scorsese se referia, e seu argumento é 100% comprovado, curiosamente, não por um filme Marvel, mas pela saga que foi criada pelo seu amigo e contemporâneo. Digam o que quiserem dos filmes de Lucas, ali pelo menos havia uma visão coerente. Agora, só há o produto comercial.

Star Wars viverá, tanto a história em si, que redefiniu a cultura pop, quanto a marca. Talvez, dos escombros, surja a esperança: Livre das amarras da novela dos Skywalkers, futuros cineastas consigam levar a franquia para novas direções e trazer um pouco de risco de volta. Podemos ter esperança – essa é uma das mensagens da saga Menos aqui: ‘Star Wars: A Ascensão Skywalker’ não tem mensagem nem esperança. É apenas mais um “parque temático” e um que nem é mais tão divertido.

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