A pandemia de Covid-19 fez com que a distância se tornasse uma convenção social em prol da saúde. Talvez este seja o motivo que, ao observar um filme como “Chocolate”, ela se torne algo incômodo. Em 1988, Claire Denis estreava na direção de longas-metragens com um projeto que busca resgatar suas memórias da infância na África colonial e desperta questões interessantes quanto a relações sociais, políticas e raciais.
“Chocolate” acompanha uma família francesa que vive em Camarões e a relação que estes estabelecem com o empregado da casa. A história é contada em flashback sob o ponto de vista de France (Mireille Perrier), a jovem filha do casal. A partir dessas memórias, a trama se desenrola sob os vieses de quatro personagens principais e reverbera em discussões latentes do processo de colonização da África, mesmo que essas colocações nunca estejam postas em palavras.
Silêncio, solidão e conflitos culturais em cena
Vale ressaltar a importância da mise-en-scène no cinema de Claire Denis. Se a distância foi algo que me incomodou bastante durante os 105 minutos de projeção, isso se deve a percepção da diretora que busca transmitir a sensação de distanciamento e não pertencimento àquele lugar. O ambiente é carregado de isolamento e ausências que são indicados, por exemplo, pelo silêncio, a solidão e o conflito cultural que imergem entre Aimée (Giulia Boschi) e a filha.
Parte disso se deve a ausência de Marc (François Cluzet), que, devido ao seu posto na administração francesa naquela região, passa distante por longos períodos do convívio familiar e, tal qual como muitos casos reais, mostra-se alheio ao que ocorre em seu lar. Assim, France cresce cercada por inseguranças e enxerga em Protée (Isaach de Bankolé) uma referência e refúgio.
O empregado, por sua vez, procura mostrar à criança um caminho diferente da atmosfera vivida por seus pais. Isso pode ser notado por meio da ligação entre eles e da presença das formigas sempre que ela o busca como alicerce. Curiosamente, “Formiga” é a forma carinhosa como o pai a trata.
O VERDADEIRO DONO DA TERRA
Todas essas interações formam um mapa das relações políticas, sociais e raciais da África colonial, convergindo na imagem de Protée. Ele é o eixo principal para onde as ações de “Chocolate” se voltam com a postura de Bankolé evidenciando a importância política do personagem.
O empregado não se mistura ao contexto em que os outros se inserem e deixa claro, sempre, que não é submisso, que possui livre arbítrio e o direito de escolha de estar ali. Mesmo em silêncio, fazendo seu trabalho, a presença de Protée relembra a todos onde estão e quem é o verdadeiro dono da terra.
Por compreender esta construção, a pequena France parece pertencer ao ambiente e sua face adulta mostra-se perdida, sem passado e presente. Claire Denis insere em constante evidência – seja nas mínimas colocações entre os personagens – as condições políticas do ambiente. Ressaltando que, apesar de se adequar ao ambiente, a menina não é um ser pertencente aquela terra: ela apenas se encontra em isolamento cultural. Isso é demonstrado pelo choque e o distanciamento na relação com a mãe.
France assusta sua mãe por ter posicionamentos de alguém que só conhece aquilo e vive como tal, já as decisões de Aimée e sua postura diante do conflito cultural atingem diretamente France e sua inocência. Um exemplo disso é a quebra abrupta da relação da menina com Protée justamente por ele se impor as vontades da matriarca. Mesmo assim, a conexão entre eles não é quebrada, passa por ressignificações, mas permanece. Seguindo o caminho oposto das escolhas de Aimée.
“Chocolate” é um bom filme para estudar a construção das relações na África colonial e apresenta os primeiros traços do que viria a consagrar o cinema de Denis. O fato dela ter vivenciado essa experiência e ter ecos disso na produção só a enriquece mais.