Em termos de cinema, os anos 1990 também merecem um lugar ao sol no atual espírito de revival dessa década. Quando partimos do recorte de um cinema de mulheres, tal período trouxe sucessos para realizadoras como Nora Ephron (“Sintonia de Amor”), Kimberly Peirce (“Meninos não choram”), Jane Campion (“O Piano”), Sally Potter (“Orlando”), Gilliam Armstrong (“Adoráveis mulheres”), Barbra Streisand (“O príncipe das marés”), dentre outras.

Foi nesse contexto de quebra gradual de barreiras que surgiu “Daughters of the dust” (idem, 1991), o primeiro filme de uma afro-americana a ganhar ampla distribuição nos Estados Unidos. Mais que uma questão de representatividade (e isso não é pouco!), o longa de Julie Dash até hoje impressiona pelo apuro visual e toque poético em sua narrativa, que mostra três gerações de uma família repleta de mulheres negras no início do século XX. Discussões sobre tradição, modernidade, busca por novas identidades e gênero atravessam agilmente a apresentação da cultura Gullah, ligada aos escravos libertos e seus descendentes no sul dos EUA.

O primeiro elemento que salta aos olhos em “Daughters of the dust” vem justamente de constatar que o filme, sendo de época, não mostrará negros como escravos – que é como sempre os vemos (quando os vemos) em dramas históricos. A altivez de Yellow Mary Peazant (Barbara O), sua companheira Trula (Trula Hoosier) e a prima carola Viola Peazant (Cheryl Lynn Bruce), que chegam do continente para rever a família nas terras insulares de Ibo Landing logo no começo do filme, dá essa pista e nos convida à reflexão sobre como pessoas de cor são representadas no cinema em geral. Mas, repito, esse é apenas um dos vários aspectos que o longa de Dash explora em profundidade.

Mulheres entre o moderno e a tradição

A chegada das primas em Ibo Landing nos introduz a força motor da trama: o fato de que boa parte da família Peazant se mudará dali para o continente em busca de uma vida melhor. O reverso dessa moeda é mostrado na figura de Nana (a fantástica Cora Lee Day), ex-escrava e bisavó da família, que vive uma vida plena na ilha e preserva as crenças e tradições africanas, ao passo que Viola e outras figuras mais jovens sofrem grande influência da religião cristã.

Para Nana, nada é mais importante que manter a identidade Gullah. Esta é marcada pela espiritualidade como catalisador de valores morais e como forma de manter a memória de seu povo. De certa maneira, ela representa o sincretismo que marca tal identidade, uma vez que os Gullah são originados da junção de diferentes etnias africanas que foram unidas no processo de escravidão nos EUA. A personagem é também um símbolo de resistência, apresentada com sua idade avançada, vestes azuis – enquanto as demais mulheres de Ibo Landing usam branco – e mãos manchadas de anil, marcas reminiscentes do trabalho escravo.

A força da identidade negra em sua essência ressoa de fora curiosa na figura de Viola. Ela é o que alguns denominariam como “crentelha”, sempre em conflito com as antigas crenças de Nana. No entanto, é justamente Viola que traz à ilha o Sr. Snead (Tommy Hicks), fotógrafo responsável por registrar a família em imagens. De certa maneira, é como se ambas as mulheres quisessem a mesma coisa por meios diversos: fortalecer a memória de seu povo.

A distinção entre as vestimentas de Nana e das demais mulheres – além das roupas modernas de Yellow Mary, Trula e Viola – trazem uma codificação interessante. A maioria das interessadas em partir para o continente usa branco e têm pouco ou nenhum conhecimento de como é a vida fora do universo aparentemente intocado de Ibo Landing, simbolizando certa pureza. Por outro lado, há uma dubiedade nisso, como bem pontua Eula (Alva Rogers) quando ela expõe como o tratamento dado às mulheres na ilha está longe do ideal. É algo que a personagem pode falar com propriedade, uma vez que Eula é uma dupla vítima do machismo: além de ter sido estuprada por um desconhecido, ela ainda passou a ser desprezada pelo marido, que a considera “suja” e a maltrata por não ter certeza de ser o pai do filho que Eula carrega no ventre após o crime.

Não por acaso, essa criança – uma menina – é a narradora não linear de “Daughters of the dust”. Trata-se outra escolha criativa que dialoga com o tema da cultura Gullah, na qual os antepassados e os que ainda estão por vir mantêm um constante diálogo em nosso plano de existência. Também não por acaso, a menina surge na tela em vários momentos, com seu vestido também branco e fita azul-anil nos cabelos, o que espelha o azul de Nana.

A condição das mulheres em “Daughters of the dust” acaba por ressoar também a partir da pequena narradora. Ela é filha de um estupro como outras mulheres ali; sua mãe, Eula, é marginalizada por algo que, além de não ser sua culpa, deveria garantir ainda mais coesão ao grupo de mulheres para que elas pudessem se proteger, não fosse o falso moralismo cristão que passa a se infiltrar a cada geração na ilha. Eula é, então, espelho de Yellow Mary, desprezada por ter ido trabalhar fora da ilha e acabar sendo estuprada, o que culminou com sua derrocada para a prostituição. Apesar de tudo, a força que Barbara O dá à interpretação de Yellow Mary é bela de se ver e emociona de forma diferente quando colocada em contraponto com a fragilidade de Rogers interpretando Eula.

A memória das raízes

O conflito entre modernidade e tradição tem um peso específico quando se leva em consideração o fato de que o filme retrata afrodescendentes. O longa destaca Nana e dá espaço para figuras mais velhas como o muçulmano Bilal Muhammad (Umar Abdurrahamn),  e nisso mostra bastante a necessidade de lembrar, entender e abraçar suas raízes. Dash trabalha com a ideia de que mesmo que tal cultura sofra influências externas ao longo do tempo, para o bem ou para o mal, a memória das raízes tem um peso crucial na vida dessas pessoas, onde quer que estejam, por envolver processos de autoconhecimento, não necessários a uma cultura tida como “inferior”.

Da mesma maneira, quando Eula diz que a vida no continente será tão penosa às mulheres quanto é na ilha, ela também entrega, nas entrelinhas, que o reconhecimento dessa condição é o primeiro passo para saber como lidar com a opressão. Em “Daughters of the dust”, raça e gênero são indissociáveis e trazidos ao público em sua complexidade, dentro de uma trama tocante na qual reconhecer-se como mulher, negra, gullah (ou pertencente a qualquer outro grupo) faz parte de entender a si mesmo. A bela trilha sonora de John Barnes cria uma unidade de grande força poética com a direção de fotografia de Arthur Jafa e o trabalho com todos os temas citados, num projeto estético difícil de esquecer após ter visto esse filme obrigatório.