O tradicional seriado “Doctor Who” completou 57 anos em novembro de 2020. A música-tema – um dos primeiros inteiramente eletrônicos criados para a televisão – entrou para os anais da ficção científica e, ainda que diversos arranjos tenham sido acrescentados no decorrer dos anos, a melodia original é usada até hoje.
Graças à burocracia da BBC – rede de TV que produz o show – à época, uma das maiores responsáveis pela criação desse tema jamais teve seu nome oficialmente creditado nele tampouco recebeu quaisquer royalties por sua criação. A julgar pelo recente interesse em sua obra, Delia Derbyshire, uma pioneira da música eletrônica, finalmente parece estar tendo merecido reconhecimento.
O novo documentário “Delia Derbyshire: The Myths and Legendary Tapes”, de Catherine Catz, é uma profunda investigação sobre a vida pessoal de Delia e como suas experiências diante do horror da Segunda Guerra e do machismo dos anos 1960 influenciaram sua obra. O filme, que teve sua estreia mundial no Festival de Londres deste ano, é uma expansão do curta de mesmo nome que Catz lançou em 2018 e é tão idiossincrático quanto seu objeto.
A artista já havia sido tema de produções como o curta “The Delian Mode“, dirigido por Kara Blake em 2009, e o especial “Sculptress of Sound: The Lost Works of Delia Derbyshire“, gravado pelo jornalista Matthew Sweet para a BBC Radio 4 em 2010. Esses dois projetos são documentais, ainda variem bastante em abordagem. Blake aposta em um curta-metragem experimental com recortes de depoimentos da música misturados com entrevistas com músicos contemporâneos que detalhando a influência dela. Já Sweet – um fã de Doctor Who familiar com a obra da compositora – faz uma mesa-redonda para rádio, com colaboradores dela comentando sua obra.
Até por se tratar de um filme, o longa de Catz se assemelha mais ao curta de Blake, ainda que use como ponto de partida narrativo o mesmo acontecimento que inspirou o especial de Sweet: a descoberta de 267 fitas perdidas de material inédito no sótão da casa onde Derbyshire morava, após seu falecimento em 2001.
No entanto, a cineasta rompe com as iniciativas anteriores ao optar por uma representação livremente imaginativa da compositora, interpretando-a em diversas encenações de momentos de sua vida. As fitas perdidas, por sua vez, são repassadas a Cosey Fanni Tutti – outra pioneira da música eletrônica inglesa, influenciada por Derbyshire – que se encarrega de criar a trilha sonora para o filme a partir de remixes do material encontrado nelas.
VISIONÁRIA E FORA DE QUALQUER PADRÃO
Abrindo mão de convenções, a diretora mostra Fanni Tutti criando a trilha do filme como parte do próprio filme e aparece em cena, interpretando Derbyshire, oferecendo comentários sobre os remixes de suas próprias composições. Abertamente bretchiano, o filme claramente se apresenta como uma produção audiovisual. Ciente de sua natureza, ele se torna seu próprio objeto em certos momentos e é manipulado da mesma forma que as fitas de áudio eram manipuladas pela compositora.
Essa decisão estilística permite a cineasta brincar com cortes ousados, bem como projeções e justaposições altamente simbólicas. Os sets, que brincam com a estética do teatro com suas luzes e cores dramáticas, ganham contornos surreais nas mãos do diretor de fotografia, Nick Gillespie. Grande parte dos 98 minutos de duração se passa neles, já que Catz limita as entrevistas com amigos e colaboradores de Derbyshire ao mínimo, preferindo se ater aos diários e depoimentos dela para compor um retrato da artista.
O filme a pinta como alguém decididamente à frente do seu tempo. Constantemente rechaçada ou ignorada em seu meio profissional por conta de seu gênero, tampouco apoiou publicamente o feminismo (ela se descreve como “individualista” em certo ponto). Ambiciosa e brilhante, ela se sentia restringida e desvalorizada em seu trabalho na BBC Radiophonic Workshop, oficina de efeitos sonoros onde compôs o tema de “Doctor Who”.
É digno de nota que seu trabalho completamente analógico precede a popularização de ferramentas digitais e sua música era criada por uma colagem de fitas de áudio que levava um tempo absurdo para ser feita. Quando os primeiros sintetizadores chegaram em cena, ela não se mostrou interessada, achando que suas capacidades eram muito limitadas para o que sua mente era capaz de criar.
Sua não-conformidade a aproxima a outras visionárias da música eletrônica como Daphne Oram, Laurie Spiegel e Suzanne Ciani, que também estão passando por um período de reavaliação crítica e aclamação. Outro documentário deste ano, “Sisters with Transistors“, dirigido por Lisa Rovner e apresentado no Sheffield Doc/Fest, é explícito ao explicar como o pioneirismo e sucesso de Oram, em específico, contribuiu para as realizações de Derbyshire, principalmente pelo fato de Oram ter co-fundado a BBC Radiophonic Workshop. “Sisters” também usa algumas das mesmas entrevistas usadas por Catz para alinhá-la num grande rol de compositoras eletrônicas através da história.
Por mais que faça sentido de um ponto de vista analítico e historiográfico, é possível imaginar a música torcendo o nariz para essa associação. Sua vida conta a história de alguém que tinha profundo desdém por representar qualquer papel ou se encaixar em qualquer movimento.
troca de ideias através do tempo
Derbyshire enfrentou o sexismo para se inserir no mundo da música, saiu da BBC quando o reconhecimento não veio, largou um marido quando a relação esfriou e trabalhou em galerias de arte, livrarias e até num gasoduto depois da fama. Todas essas decisões inevitavelmente trazem consequências a imagem pública de alguém, principalmente se esse alguém for mulher.
Ao deixar Londres, Derbyshire criou um vácuo de perguntas sobre sua pessoa que todos se prontificaram a preencher com respostas com variados graus de verdade. O filme de Catz quer questionar a criação desses mitos, bem como a narrativa e a percepção midiática da compositora, usando como contraponto a sua interpretação de uma personalidade incrível, dedicada aos mistérios do som.
Uma vida assim jamais caberia numa retratação tradicional, então ao invés de um documentário narrativo clássico, a melhor descrição do longa talvez venha dele mesmo, logo no início: “uma troca de ideias através do tempo”. Nesse espírito, a produção propõe diálogos entre a compositora e sua intérprete (Catz) e uma de suas discípulas (Fanni Tutti).
O resultado é um estimulante tratado sobre inovação e resistência e um retrato multifacetado de uma artista que abriu caminho para inúmeras explorações sonoras. Hoje, a vida digital tornou a manipulação de sons parte da vida cotidiana. Ter vislumbrado isso nos anos 60 é prova de que Delia Derbyshire, como o personagem que imortalizou, também era capaz de viajar no tempo.