Eleger um animal como protagonista no cinema não costuma dar muito certo. Ou o filme cai na pecha de “bonitinho”, obliterando valores estéticos e narrativos – Babe, o Porquinho Atrapalhado (1995), por exemplo, é um ótimo filme, mas até hoje segue sendo considerado apenas bonitinho – ou assume de vez o apelo à fofice e ao chororôMarley e Eu (2008), por exemplo, até diverte, mas força muito a barra nas lágrimas.

Por isso, a desconfiança de muita gente quanto a ver um “filme de cachorrinho”, como eu próprio resmunguei diante de Deus Branco (2014, em cartaz em cinemas de São Paulo e Rio de Janeiro, mas facilmente encontrável na internet) o filme do diretor húngaro Kornél Mundruczó, que elege um vira-lata como símbolo da opressão, do preconceito e do sentimento de revolta que fervilham nos bolsões de imigração europeus, à espera apenas da primeira faísca.

Hagen (vivido pelos cães Luke e Body – sim, são dois!) é um vira-lata de cor alaranjada e olhos claros, que se muda com a pequena dona, Lili (Zsófia Psotta), para o apartamento do pai desta (Sándor Zsóter), enquanto a mãe da menina está viajando. A relação tensa entre os dois, mais o inconveniente representado pelo cão – os vizinhos não o querem no apartamento, e donos de cães “mestiços” precisam pagar uma taxa ao governo, que não existe para cães “puros” – leva à atitude infeliz: o pai de Lili larga Hagen na rua, dando início ao périplo do animal.

Pela hora seguinte, vamos acompanhar as consequências desse abandono, para Hagen e Lili, com grande prejuízo para o primeiro: ele precisa sobreviver à carrocinha, aos humanos hostis, a espancamentos e rinhas, e testemunhar a morte e os maus-tratos constantes a seus colegas de quatro patas. É o momento em que Deus Branco dá a virada impensada: Hagen se cansa. Mais que isso – ele quer devolver essa brutalidade aos humanos, e da forma mais violenta possível.

De fato, não é o “filme de cachorrinho” que a escolha do protagonista sugere. Deus Branco tem um escopo muito maior, e usa sua fantasia sinistra para refletir sobre o desastre iminente na relação entre as prósperas nações europeias e a multidão de abandonados, famintos e desesperados que se amontoa em suas fronteiras todos os dias. Nesse sentido, Lili é a cara desorientada do continente: impotente diante do abandono, ela se dedica a procurar Hagen, mas suas pequenas e erráticas tentativas dão lugar a outros dramas mais íntimos, como a ânsia de se tornar independente, ou as primeiras paixonites. Do lado de cá, Hagen sofre o diabo, e é obrigado, numa rinha, a matar outro cão.

O filme perde nessa desproporção: a história de Lili não é nem de longe tão aflitiva quanto a do cachorro, quanto mais surpreendente. Ela é necessária, porém, para alinhavar o “embate” no fim do filme, deixado, provocativamente, às conclusões do próprio espectador. Também pesa sobre o belo trabalho de Mundruczó a trilha reiterativa e bombástica de Marcell Rév, que exagera as imagens já impactantes dos cães em revolta.

Um elemento bastante positivo do filme é a economia narrativa. Há crueza e violência, sem dúvida, mas sequências como a da rinha ou a da reação dos humanos no túnel, usando armas para abater os cães, são quase elegantes em seus planos rápidos e certeiros. O grande trunfo, porém, tem de ser mesmo o elenco: não só Luke e Body, os cachorros, exibem desempenhos incríveis, comunicando medo, confusão e raiva com aterrorizante precisão (o que é aquele olhar arrependido depois da briga?), como o elenco humano, incluindo a novata Zsófia, exala naturalidade em cena.

Deus Branco foi o vencedor, no ano passado, da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes, que premia filmes com abordagens inovadoras. Luke e Body ganharam ainda a Palm Dog, um agrado especial para desempenhos caninos notáveis. Se não chega a ser um grande filme, por causa do desequilíbrio entre as duas tramas, a obra fascina por sua reflexão dura sobre um tema quentíssimo, além de varrer para longe a ideia de que filmes com cachorros precisam apelar somente à ternura do espectador. E, nas incríveis cenas da rebelião canina, as centenas de cães de rua escolhidos e treinados para o filme ganharam depois novas famílias, através de um programa de adoção da produção.

Um belo exemplo, fora da tela, de integração para um mundo de diferenças absurdas e potencialmente explosivas – e, diante da vitória de outro exemplar pujante do cinema húngaro, O Filho de Saul, no Oscar deste ano, mais uma bela razão para se seguir de perto o que vem daquele país.