Não é preciso mais que dois minutos para notar a diferença de personalidades: Selma Bustamente, figura essencial para a história do teatro amazonense nas últimas duas décadas, é uma máquina de histórias sempre aliadas a opiniões políticas fortes, exageros permeados de bom humor e divagações pelo meio do caminho. Fundador e diretor de fotografia da Artrupe Produções, César Nogueira adota uma postura mais introspectiva, centrada, escolhendo de forma precisa cada palavra a ser utilizada.

O documentário “Purãga Pesika” (‘bem-vindos’ em Nheengatu) e a transformação provocada em suas vidas pela cultura indígena são os pontos convergentes entre Selma e César. Juntos com o ator e produtor Fidelis Baniwa, eles viajaram para a região do Alto Rio Negro, onde visitaram sete comunidades indígenas nas cidades de Barcelos, São Gabriel da Cachoeira e Santa Isabel do Rio Negro entre o fim de outubro e o início de dezembro de 2016. Nestes locais, Selma realizou oficinas para os nativos em que os índios se utilizavam de técnicas teatrais para contar as suas próprias histórias. No fim dos três dias em cada uma destas comunidades, a atriz fazia uma apresentação da personagem mais célebre da carreira: a palhaça Kandura.

Premiado no edital da Funarte Miriam Muniz de 2015, o projeto de circulação teatral surgiu quando Selma passava uma temporada em São Paulo para se recuperar de um problema de saúde. A princípio, a ideia seria fazer uma viagem ao interior do Amazonas em que o vídeo seria apenas um registro das atividades desenvolvidas por ela juntos aos indígenas. A inclusão de César na equipe inicialmente formada pela atriz e por Fidelis acabou mudando o rumo para que as gravações resultassem em um documentário.

“Eu fui com esse ideia de fazer documentário porque via potência na proposta. Imaginava que rendia um material mais rico do que um simples registro. Ainda havia o fato de ir à São Gabriel da Cachoeira, o lugar mais bonito que já fui. Acho maravilhoso desde a natureza até o choque do caldeirão cultural presente na região”, declarou César.


Sem roteiro e as adversidades pelo meio do caminho

Fazer “Purãga Pesika” além do registro visual, porém, não significou um projeto fechado. A equipe viajou para o interior do Amazonas sem um roteiro determinado por não saber exatamente o que iria encontrar pelo caminho. “O César não sabia como eu trabalhava teatro. Não havia essa relação. Na filmagem, ele foi aprendendo a saber o que eu fazia para saber o que pegar. Às vezes, eu até falava, dava alguma instrução. Se fôssemos hoje, faríamos diferente, mas, pode ser que perderíamos a virgindade da novidade. Eu estava mais interessada em viver do que em registrar”, disse Selma.

Segundo César, a gravação bruta do documentário tinha mais de quatro horas de duração. Após todo o processo de montagem, a versão inscrita para a III Mostra do Cinema Amazonense ficou com pouco mais de 18 minutos. Ele admite que ir sem um roteiro fechado foi um risco, mas, não se arrepende e considera esta proposta válida para o projeto.

“A gente não trocou muitas ideias. Ele foi filmando que nem um louco. Quando fomos editar, tínhamos um material farto, mas, não dirigido. No início da montagem, ficamos perdidos. Tínhamos muita coisa, mas, tinha coisas que não foram feitas”, completou Selma.

Uma viagem para uma cultura tão diferente traz também suas aventuras e adversidades. Para comer, por exemplo, César passou por maus bocados. “Eu era o cara que não comia a comida deles. A base da alimentação deles é caldo, farinha e peixe, coisas que não sou dos mais entusiastas. Daí, me virei no Pringles”, revelou, admitindo que isso fez com o que perdesse a oportunidade de estreitar os laços com os indígenas.

Apesar de não ter tanta dificuldade para se adaptar à comida, Selma brincou que nunca rezou tanto Pai Nosso como nos dias em que permaneceu junto com os indígenas antes das refeições. A situação se complicou mesmo quando acabou pegando malária e precisou antecipar o retorno ainda com a metade das atividades previstas para serem realizadas em Barcelos.

“Para fazer este tipo de viagem, você precisa estar muito bem preparado. Porque você vai se confrontar com outra cultura. Precisa-se ter uma maturidade para engolir um pouca a sua, sem também esquecê-la totalmente para permitir esta troca”, declarou Selma.


Impacto da cultura indígena em suas vidas

Durante a entrevista de mais de duas horas de duração concedida ao Cine Set, o impacto da viagem ainda é visível em César e Selma. Para a atriz que começou a carreira há quase 50 anos em São Paulo, com uma única passagem, até então, pelo audiovisual ao fazer televisão educativa no Piauí e uma larga carreira no teatro amazonense, as lições culturais deixadas pelos indígenas foram muito maiores do que o feito por ela nas oficinas para a comunidade local. “A viagem se chamava Escambo. Só que não imaginava que seria tão escambo assim. Eles me deram um retorno muito maior do que eu dei. Eu não transformei a vida deles em nada, agora, eles mudaram em mim”, disse.

Selma ainda acredita que, apesar de todos os avanços dos homens brancos sobre os indígenas, estes não perderam a cultura própria. “Os índios possuem algo especial em relação ao respeito com o próximo. Há um respeito para com as crianças, idosos. Nesta sociedade em que vivemos, são necessárias leis para que isso aconteça”, declarou Selma.

Mesmo com as dificuldades alimentares, César pode também dizer que saiu mudado da experiência, especialmente, em relação a lidar com o tempo. “Dormia 20h e acordava 5h. Tomava banho de rio, perdi o conforto da vida urbana, mas, ganhava, contato mais próximo com a natureza e com pessoas que levam a vida com um outro tempo. Me preocupava com o norte do filme, mas, depois de um tempo, eu comecei a ficar menos neurótico, o ambiente ajudou, até porque eu fui só filmando. Pensei muito pouco, foi até diferente para mim porque gosto de planejar as coisas. Foi uma experiência de tirar certas preocupações, ansiedades e abraçar esta cultura indígena”, disse.

 


Descoberta no processo da montagem

Os desencontros entre Selma e César durante as gravações no interior do Amazonas poderiam resultar em uma confusão com as quatro horas de material bruto na transformação de um documentário em curta-metragem. O processo de montagem, porém, foi o momento em que os dois artistas mais se sincronizaram.

“Na viagem, ele tinha o jeito dele e eu o meu. Até nos entendemos, mas, sentia que ainda não existia intimidade. Na edição, conheci o César que não conhecia. Ele tem uma mobilidade maior: dizia vamos experimentar tal coisa, ele topava. Muita gente pensa, o filme é do César e eu digo: não gente, ele é nosso. Se ele fosse fazer sozinho, o filme teria uma cara diferente do que ficou. Teve muita coisa que sugeri que entrou na versão final e foi dando uma direção ao projeto. Quando estamos trabalhando juntos, estamos, de fato, fazendo isso. Ele tem isso como uma qualidade pessoal”, elogia Selma.

César concorda ao afirmar que as filmagens partiram de um olhar dele, enquanto a montagem veio de um processo em conjunto. Para tanto, a parada para fazer a série “O Boto” foi necessária, segundo ele, para criar o distanciamento do material obtido na viagem. “Isso foi bom para o documentário porque vimos as potências e clarezas do material que tínhamos. Decidimos focar nas atividades que a Selma foi fazer lá. Não é um documentário profundo, existencial, antropológico. Nosso interesse é fazer algo simples como um Baião de Dois (mesmo nome do grupo teatral criado por Selma e o marido Edgard Lippo) que as pessoas vejam e se toquem seja de modo intelectual ou emocional de alguma maneira”, disse.

Segundo César, os documentários contemporâneos do Netflix e as obras do diretor amazonense, Aldemar Matias (“Parente”, “El Enemigo”) foram as principais influências para “Purãga Pesika”. “O foco destes projetos está na potência da imagem e da observação sendo mais interessante do que apontar uma câmera e entrevistar as pessoas”.


Futuros projetos juntos?

Concentrado no processo de pós-produção de “O Boto”, César Nogueira não descarta parcerias solo com outras pessoas fora da Artrupe, incluindo, a própria Selma. “Acho saudável para minhas finanças e carreira fazer trocas. Acho perigoso se fechar e ficar auto-referente: o mundo é muito grande”, disse.

Selma reconhece que somente poderia fazer uma viagem como esta até os 66 anos de idade. Para isso, o tempo corre e exige um planejamento maior. A possibilidade de um novo encontro artístico com César já começou a ser estudado. “Eu sugeri uma possibilidade para ele e o César já veio com uma outra ideia. Até pensei: poxa, ele está me levando a sério (risos). Levar o filme faz parte do projeto e poder possibilitar uma visão deles para as coisas”, disse.

“Purãga Pesika” deve ser lançado em Manaus ainda neste ano.