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Lembro que Em Transe passou uma semana em cartaz em Manaus. Uma semana no Cinemais do Millennium, e pouquíssima gente foi assistir a este filme, não sei se por falta de conhecimento, visto que o trabalho não teve muita publicidade em cima, ou se por não apreciar o seu diretor, Danny Boyle.

Não vou ser ingênuo de defender Boyle com unhas e dentes, dando ao seu nome um status grandioso, que de fato, ele não tem. Sua filmografia é cheia de altos e baixos, momentos de afetações injustificadas, e um estilo que incomoda por ser ou simples demais, ou por descambar para a perfumaria.

Mas não se pode negar uma coisa: quando ele acerta… chega a um lugar que está muito, muito acima do comum, do que nos é oferecido tradicionalmente, beirando a transcendência, com filmes que ficam na cabeça. E quando isso acontece, o seu estilo agrega demais ao trabalho, deixando claro que ali existe um diretor extremamente talentoso, que pode errar pelo excesso, mas nunca pela omissão.

Todas as qualidades de Boyle, somadas ao imponderável, a energia positiva do universo, e a todo tipo de coisas que não podemos explicar de maneira lógica, estão concentradas em Trainspotting (1996). Não consigo pensar em muitos outros filmes que acertem tanto quanto essa injeção de heroína na veia, neste que já se tornou um clássico do cinema.

A combinação trilha sonora + montagem alcança o seu esplendor neste trabalho, uma dupla que nunca fora integrada de maneira tão intensa, tão contraventora quanto aqui, uma realização que contraria teorias de cinema, de comportamento, de estilo, de seja lá o que for, em prol de uma experiência transcendental, que desafia o que você sabia, ou julgava que sabia, que te pega pela mão com força, te coloca numa montanha russa a 300 km/h que parece nunca ter fim, até terminar o passeio, com você na fissura de dar mais uma volta.

Sei que Em Transe não é Trainspotting, e que talvez (aliás, é bem provável) Boyle nunca mais consiga alcançar a grandiosidade do seu maior filme. Porém, acho que o trabalho desempenhado pelo diretor é digno de elogios, que infelizmente é sempre ofuscado por críticas ao seu estilo, visto que hoje em dia ele parece ser um cineasta que as pessoas amam odiar, até mesmo quando ele acerta.

Admito que Quem Quer Ser Um Milionário? (2009) é uma derrapada na carreira do diretor (embora ele não seja tão ruim como muitos dizem), mas, por exemplo, 127 Horas (2011), o seu filme seguinte, é um trabalho bastante consistente que, apesar das indicações ao Oscar, foi bastante criticado durante o seu lançamento.

Mas com Em Transe foi diferente. O filme não foi criticado, mas ignorado, deixado de lado, como se nunca tivesse existido. O que é uma pena, pois trata-se de um filme repleto de qualidades.

Na trama Simon (James McAvoy) é um funcionário de uma casa de leilões que, junto com uma quadrilha, rouba um quadro que vale milhões de dólares. Porém, durante o roubo Simon leva um forte golpe na cabeça, e quando acorda não sabe onde está a obra de arte. O chefe da quadrilha, Franck (Vincent Cassel), depois de tentar de várias maneiras fazer com que Simon lembrasse onde escondeu o quadro, decide leva-lo para uma hipnotizadora, Elizabeth (Rosario Dawson), que aos poucos vai fazendo com que ele se lembre de detalhes daquele dia. Só que com o passar do tempo as lembranças de Simon vão ficando cada vez mais confusas, e os envolvidos no assunto vão mostrando diferentes faces com o passar do tempo, o que faz com que as informações se tornem cada vez mais misturadas e difíceis de compreender.

É muito importante começar bem um filme. É claro que isso não é uma regra, grandes filmes optam por começar devagar, guardando suas melhores qualidades para o seu decorrer, sem “entregar o ouro” logo no início. Mas quando o filme já começa em velocidade acelerada, apresentando a sua trama jogando o espectador no meio de um turbilhão, isso, se bem executado, faz com que criemos uma empatia automática com o trabalho.

E Em Transe começa muito bem. Muito bem.

Admito que pode haver certo exagero de estilo quando McAvoy fala para a câmera enquanto descreve o que está acontecendo, mas… essa parte é  extremamente bem dirigida, nos envolve por completo logo de cara, acompanhamos como cúmplices todo o desenrolar daquele roubo, é impossível resistir àquela narração, com aquela montagem, com aquela trilha.

E o que vemos depois dessa introdução é uma trama intrincada, que nos introduz àquele universo de maneira inteligente, aos poucos, novamente com montagem e trilha funcionando muito bem. Mas o destaque fica para o seu elenco, que é todo de altíssimo nível. A trinca formada por McAvoy, Cassel e Dawson tem uma excelente química, e somados aos companheiros de gangue de Franck (todos ótimos), temos um elenco nivelado por cima, que legitima as idas e voltas do roteiro.

A trama é boa, caminha bem. A direção, a partir da metade da projeção, começa a borrar a linha do que é real e do que é sonho, as atuações vão ficando cada vez mais enigmáticas, as teorias começam a surgir em nossas cabeças, a trilha e a montagem crescem ainda mais, a direção brilha quando ousa na fotografia, com seus planos inclinados, e na direção de arte (fantástica), com seus cenários repletos de cores vivas, com paredes translúcidas, transparentes, dando um ar fantasmagórico às situações. Estamos inseridos numa experiência que não se explica, que aguça nossos sentidos, que nos engana, ludibria, que caminha cada vez mais fundo nas variadas cores que aparecem na tela, nos afastando cada vez mais do que seria lógico.

E aí vem o desfecho…

Sim, concordo que o fim é muito abaixo do restante. Que ele estraga a festa, que ele se explica demais, que tira o doce da nossa boca, que não nos dá o prazer de ficar com dúvida (alguma, qualquer uma) na cabeça.

Porém, acredito que é injusto jogar a experiência de assistir a esse filme no lixo apenas pelo seu final, mesmo que ele seja realmente problemático. Não se pode esquecer que quando Boyle acerta, ele acerta em cheio, faz muito mais do que um filme regular faz, chega onde um filme nota 6,0 jamais chegaria.

E foi com esse pensamento que deixei a sala de cinema, além de estar muito feliz por ter tido a chance de ver um filme como esse no cinema, visto que em Manaus isso não acontece com frequência.

Gostando ou não do todo que é Em Transe, é impossível negar que ele possui momentos que representam um cinema da melhor qualidade.

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NOTA: 7,5