Muito se fala hoje sobre a necessidade de uma construção mais apurada para personagens do cinema que não são homens caucasianos. Num contexto em que 51% dos filmes vencedores do Oscar sequer conseguem passar no teste de Bechdel, uma pérola do diretor francês Claude Chabrol mostra como bons roteiro e direção naturalmente levam à composição de grandes personagens, independente do gênero. Essa riqueza é perceptível em “Entre amigas” (Les bonnes femmes, 1960), um filme que foi um fracasso na época de seu lançamento, mas que curiosamente ressoa moderno, e que cuja leitura a partir do feminismo revela discussões bem atuais sobre a vivência feminina.

Parte dessa sensação de atualidade vem do fato de que “Entre amigas” possui um caráter dúbio: produzido em meio aos ares da Nouvelle Vague, o longa apresenta características caras ao movimento, tais como a escolha por locações na própria cidade, e não em cenários, assim como diálogos e temáticas mais próximas do que podemos chamar de marginal; ao mesmo tempo, a sensação de constante vigilância e alienação que Chabrol imprime à rotina das amigas do título o aproxima dos suspenses psicológicos de Alfred Hitchcock, marcados por uma manipulação, mais notadamente, na fotografia e na montagem, que acabam por embaçar as fronteiras entre a objetividade documental da vida nas ruas e as vivências subjetivas das moças.

Na trama, acompanhamos a expansiva Jane (Bernadette Lafont), a quieta Jacqueline (Clotilde Joano, perfeita nesse papel), a misteriosa Ginette (Stéphane Audran) e a apreensiva Rita (Lucile Saint-Simon). As moças humildes trabalham juntas numa loja administrada pelo esquisitíssimo Senhor Belin (Pierre Bertin), cuja rigidez torna ainda mais ameaçadores os momentos em que ele chama alguma de suas empregadas para conversas individuais a portas fechadas em seu escritório. A única companhia mais velha e confiável na loja é a veterana Senhora Louise (Ave Ninchi), que encara as longas horas de tédio no trabalho admirando um objeto que guarda escondido dentro da bolsa.


ELES E ELAS

Cada uma dessas personagens femininas é apresentada de forma a dar conta da complexidade de suas subjetividades. Jane parece uma garota alegre e superficial, mas a amargura que deixa escapar em alguns momentos mostra que há mais desespero e escapismo em suas ações do que ela gostaria de admitir. Como contraponto, o ar blasé de Jacqueline não é o suficiente para esconder a inocência da jovem ao guardar seu amor para Andre (Mario David), um motociclista de jaqueta de couro que a segue por todos os lugares e cuja identidade ela desconhece. Ainda que menos exploradas, Ginette e Rita funcionam como boas coadjuvantes: a primeira tem uma vida dupla, trabalhando na loja pela manhã e cantando na noite, e a segunda tenta, a todo custo, moldar-se aos valores burgueses da família do noivo.

Por essa descrição, é perceptível que o cotidiano das jovens é bastante demarcado em função dos homens – algo nada incomum na época, e também não tão incomum hoje. É a partir dessas interações com o masculino que, de fato, começamos a adentrar nos temas do longa. Ao passo que as mulheres são representadas de forma tão naturalista, com a trama como um todo sendo guiada a partir do ponto de vista delas, os homens são todos caricatos: os mais velhos, como Belin ou a dupla de assediadores Marcel (Jean-Louis Maury) e Albert (Albert Dinan) parecem saídos de um desenho animado, com a expressão corporal sempre exagerada e um tanto patética. Já os mais jovens, como o namorado de Jane e o noivo de Rita são omissos e fracos. Com exceção de André, todos são notadamente unidimensionais.

Longe de ser uma falha no roteiro de Chabrol e Paul Gégauff, esse contraste é essencial para alavancar a trama. Os homens se mostram magnéticos, mas assustadores, falhos e ridículos; no entanto, o mundo das mulheres é socialmente construído de forma a existir em função deles, e, mais que isso, ser moldado por eles. A metáfora do masculino como bestial e dominante é clara na sequência em que as meninas vão ao zoológico. O rosto contorcido de André, por exemplo, é mostrado num close que deixa no ar a dúvida se ele seria um monstro tão grande quanto os felinos enjaulados. A figura das hienas também é destacada – justo o animal que emite sons que lembram risadas, mas que, no geral, são selvagens e se alimentam de restos.

É curioso cruzar esses elementos com outra história que chamou a atenção de Chabrol décadas depois, quando ele dirigiu uma adaptação de “Madame Bovary” (idem, 1991). Jane, Jacqueline, Ginette e Rita podem ser lidas, como bem apontou o crítico David Thomson, como faces de Emma Bovary, a trágica personagem de Flaubert que encontra a ruína a partir do desequilíbrio entre realização pessoal e amor. E se Flaubert frisou o trágico em seu livro, Chabrol, também admirador dos thrillers de Hitchcock, encontra uma forma de fazer o mesmo em “Entre amigas”.


ISSO NÃO VAI DAR CERTO

A Chabrol, é caro mostrar suas moças na cidade, mas não numa Paris bela e romântica. A cidade é apinhada de gente, caótica, cheia de luzes que iludem e sombras que intimidam. A interação entre homens e mulheres é, no geral, invasiva. Assédio e estupro são mostrados de forma corriqueira porque assim o são no universo daquelas mulheres de baixa renda cujas rotinas acompanhamos, mas o ponto de vista dessas cenas é dado a elas e dá conta de não naturaliza-los. Esse, inclusive, é um dos elementos que permitem que assistamos a “Entre amigas” e praticamente não sintamos o quão antigo o longa é, pois o deslocamento desse ponto de vista do espectador para quem sofre os ataques, e não para quem os inflige, é justamente um dos pontos colocados por críticos e cineastas de hoje para garantir maior humanização e aprofundamento em personagens como mulheres e minorias.

Porém, Chabrol é comprometido com uma visão pessimista de mundo, e o ambiente de “Entre amigas” é um convite ao trágico de Flaubert e ao flerte com a loucura tão querido a Hitchcock. Como espectadores, avançamos com o quarteto protagonista pelas noites parisienses e nos aproximamos de seus tipos ameaçadores, mas também nos sentimos inebriados pela personalidade de Jane, Jacqueline, Ginette e Rita – e isso, inevitavelmente, imerge-nos na obsessão delas pela paixão e pelo amor. E, como não estamos em uma comédia romântica de Audrey Hepburn, isso não vai dar certo…

O aparente macguffin do filme, representado pelo objeto misterioso na bolsa da Senhora Louise, mostra-se na verdade um prenúncio de que o peso de “Entre amigas” irá além da alienação imposta às protagonistas. Outro prenúncio é a cena da apresentação de Ginette, que canta uma triste canção de amor cuja melodia é alegre. Ela força um sorriso e trejeitos sedutores à plateia, usando um vestido longo e peruca preta – mas, por dentro, teme ser reconhecida pelas amigas que a assistem ali, por acaso.

O apontamento do falso glamour e da tentativa de fuga de uma realidade medíocre traz uma ruptura com o que se poderia tomar como uma pegada neorrealista ao longa. A montagem nessa cena entrecorta prazer e dor, realização e temor, trazendo planos subjetivos cada vez mais fechados, com as luzes do palco cegando Ginette como se nos cegasse. Essa ousadia dialoga diretamente com as ousadias estilística da Nouvelle Vague – não por acaso, esse filme é apontado como um dos marcos de um movimento que, na prática, nunca foi tão homogêneo assim. A sensação de sufocamento é próxima da de uma cena de assassinato e, curiosamente, consegue sumarizar muito do filme. Mas falar mais que isso seria entregar a cartada final de “Entre amigas”.

Chega a ser estranho como um filme de um diretor sem grandes compromissos com uma proposta de cinema feminista consegue tocar, sem ser panfletário, em pontos tão contundentes da vida da mulher no geral: as questões de assédio, a restrição à ambição delas como ser social, a imposição do amor romântico como elemento central e, em especial, o lançamento de um olhar ao homem como ser potencialmente perigoso são elementos que circundam e determinam “Entre amigas” explicitamente. Com Chabrol, o que importa mesmo é contar bem uma história com o que tem em mãos, e por isso merece ser mais revisitado após tantos anos.