No começo desta semana, o cineasta paulista Henry Grazinoli esteve em Manaus ministrando uma palestra no Impact Hub sobre Storytelling e o impacto social do ato de contar histórias no cinema. Grazinoli é o diretor do ótimo documentário Um Novo Capitalismo, disponível na Netflix, que aborda casos de pessoas e empreendedores no Brasil, Índia e México, que buscaram novas maneiras de pensar a atividade econômica.

Ele é também um dos diretores da Social Docs (https://www.socialdocs.com.br/), produtora paulista dedicada a realizar filmes e trabalhos audiovisuais voltados para a temática social, sempre enfatizando as narrativas humanas por trás das ações e conceitos sociais. Grazinoli falou ao Cine Set sobre seu trabalho, e a importância das histórias, na entrevista abaixo (Agradecemos ao pessoal do Impact Hub pela colaboração na realização desta entrevista).

CINE SET: Um Novo Capitalismo junta várias histórias para criar o panorama de uma questão macroeconômica, partindo da visão micro, e leva à reflexão sobre uma nova forma de se pensar a economia capitalista. Como você chegou a essas histórias?

HENRY GRAZINOLI: Essa sua interpretação de mostrar o micro para falar do macro é bem correta. A gente teve muito essa intenção, desde que eu entrei no projeto. Vou te explicar rapidamente como foi esse processo: esse filme não é um projeto meu. Esse projeto nasceu há dez anos, mais ou menos, na cabeça de três empreendedores sociais aqui de São Paulo, que são o Antonio Ermírio de Moraes Neto, que está no filme; a Lina Valentini e o Fernando Mistura. Eles eram estudantes de Administração e Economia da Fundação Getúlio Vargas e tiveram contato com esse universo dos negócios sociais, que… Bem, se hoje esse universo ainda é novo, naquela época então quase não se falava disso.

Eles tiveram contato com isso e fizeram uma pesquisa para encontrar esses negócios, inclusive fora do Brasil, pois não havia informação sobre eles aqui. A primeira pesquisa foi feita pelos idealizadores do filme. O episódio que fizemos na Índia, sobre o hospital Aravind, e o que fizemos no México, sobre o banco Compartamos, vieram dessa primeira pesquisa. O hospital e o banco são grandes referências nesse campo dos negócios sociais. Eu entrei no filme depois; essas histórias inclusive já tinham sido gravadas. Eles já tinham ido lá e não estavam conseguindo dar uma condução para o restante do filme. Como a minha formação é de roteiro, embora já tivesse dirigido alguns documentários, e sempre trabalhei também na área social com vários projetos, eles me chamaram para assumir a direção e o roteiro do filme. Com a minha entrada, demos esse enfoque no micro. Propus logo de cara que achava que esse filme deveria contar histórias de personagens, de gente, de casos que estão acontecendo, e através dessas histórias, a gente mostraria o conceito geral.

A partir daí, começamos uma pesquisa no Brasil. Outro ponto que foi levantado era esse: é muito legal termos histórias de fora, porque nos dá a visão internacional, global, mas vamos agora falar do Brasil. Entrei junto com eles num novo processo de pesquisa e triagem de personagens, de empreendedores brasileiros.

CINE SET: O Cine Set realiza várias atividades de cunho educacional, vários cursos, incluindo os de roteiro, e sempre temos muitos alunos interessados em aprender sobre técnicas e ensinamentos para contar histórias. Qual, em sua opinião, é o verdadeiro poder das histórias?

HENRY GRAZINOLI: Minha visão é de que as histórias são as ferramentas de comunicação mais poderosas que existem. Não existe nada como contar uma boa história para que você consiga sensibilizar alguém, ou para ensinar algo para alguém. Na Social Docs, nós envolvemos uma série de ferramentas para o desenvolvimento de estruturas narrativas que são muito baseadas na narrativa clássica. Então, gosto muito de pensar no trabalho do Aristóteles, lá atrás… As ideias dele sobre empatia e catarse.

A catarse é uma coisa importantíssima para que uma história consiga conduzir a nossa emoção e conversar com a gente num registro que não é o racional. Na nossa visão, as histórias falam com a gente num lugar muito mais profundo, mais primitivo, do que o racional. Existem vários estudos que comprovam isso. É interessante, porque Aristóteles escreveu sobre isso 300 anos antes de Cristo, e hoje temos experimentos científicos que comprovam que ele tinha razão em vários tópicos que ele abordou.

Nos EUA, o neuroeconomista Paul Zak fez uma pesquisa sobre os elementos químicos que o corpo libera quando estamos diante de uma história bem contada. Quando você tem contato com uma história assim, seu corpo libera várias substâncias químicas que fazem você sentir empatia, ter uma vivência profunda daquela história, como se você fosse o personagem. A gente “desliga o nosso cérebro”, de certa forma, e entra numa vivência interior muito profunda. Por isso rimos, choramos, sentimos medo, enfim… Entramos num outro nível, que não é o racional.

Outra coisa interessante: temos no Brasil um neurocientista brilhante, o Sidarta Ribeiro, que estuda os sonhos. Algumas histórias que ele conta, e algumas conclusões a que ele tem chegado com seus estudos, são maravilhosas. Como por exemplo, a de que a gente sonha mesmo antes de ser humano, pensando em termos da evolução humana. A ideia de que nós, como mamíferos, antes mesmo de sermos humanos, já começamos a ter um sono mais profundo, o sono REM, que gera os sonhos, e os sonhos são narrativas. Eles já são construções narrativas, e depois desenvolvemos linguagens para dar conta deles, contando histórias já na época das cavernas, desenhando nas paredes e trocando experiências com outros membros da comunidade… Então, as histórias fazem parte da nossa essência. Talvez uma das coisas mais relacionadas à condição humana seja o ato de contar e ouvir histórias. Acreditamos mesmo que usar desse recurso para comunicar é algo muito poderoso.

CINE SET:  Hoje vivemos num mundo em que o espectador possui praticamente inúmeras opções de entretenimento e de filmes para se assistir, em várias plataformas. Como os aspirantes a roteiristas podem usar as técnicas de storytelling para ajudar a chamar atenção para os seus projetos?

HENRY GRAZINOLI: A técnica de storytelling está ligada ao desenvolvimento do próprio roteiro.  Quando entendemos que as histórias fazem parte da gente, do ser humano, desde sempre, também entendemos que, de uma maneira ou de outra, todo mundo é capaz de contar uma história. Então, cada um de nós já possui um conhecimento intuitivo sobre contar uma história. Mas para se passar desse conhecimento intuitivo para um trabalho mais profissional, é preciso dominar algumas técnicas, certo? Tirar isso da intuição e transformar num conhecimento prático.

Então, acho que sim, para escrever um roteiro é importante ter esse conhecimento técnico, faz toda a diferença. Mas quando você fala de chamar a atenção, se destacar… Um bom contador de histórias, para que ele consiga chamar atenção e viabilizar seu projeto, precisa ser também um bom vendedor. É possível sim usar essas técnicas para se criar um bom projeto de venda, um pitching, uma maneira de apresentar o projeto.

Como você mesmo disse, hoje há cada vez mais conteúdo sendo veiculado, cada vez mais concorrência para fazer um filme ou produto audiovisual. É preciso ser diferente, fazer uma boa apresentação de venda e ter o domínio do que se deseja contar. Isso é tão importante quanto escrever um bom roteiro, e as técnicas do storytelling podem ajudar nisso também.

CINE SET:  Fale sobre a Social Docs. Como foi a criação da empresa? Nesses anos trabalhando em projetos de impacto social, qual a maior realização da Social Docs, na sua visão?

HENRY GRAZINOLI: A Social Docs, de minha parte, provém muito da minha experiência como diretor de O Novo Capitalismo. Eu já trabalhava com projetos sociais antes, mas, passar cinco anos mergulhado nesse universo dos negócios sociais abriu meu coração para essa nova coisa que eu quis fazer: Uua empresa social que preste um serviço importante para a sociedade, para a minha cidade e o meu país. Aí encontrei o Marcelo Douek, meu sócio, e ele vem da publicidade, é dono de agência, focada no mundo corporativo. Ele também vinha num momento semelhante, tinha feito alguns trabalhos no setor social como voluntário, e estava inquieto, a fim de fazer algo nesse sentido. Depois de algumas conversas, fizemos um pequeno mapeamento da comunicação do setor social no Brasil, e percebemos que havia um lugarzinho ali que podia precisar de nós. Não tem muita gente oferecendo isso no Brasil, não é? Gente especializada que conhece o setor social e que tinha vontade, acima de tudo, de contar essas histórias.

Então, a Social Docs começa aí. Somos uma produtora especializada em desenvolver filmes e outros produtos de comunicação voltados para causas sociais. Atendemos ONGs pequenas, médias e grandes, brasileiras e internacionais, e também empresas com projetos sociais relevantes. Sobre uma grande realização… Acho que tivemos alguns momentos, é uma empresa nova, de três anos, mas nunca paramos de crescer. Estamos caminhando bem e isso é uma realização. Percebemos que, quando começamos, o setor social nem estava consciente da importância de uma comunicação de qualidade, e hoje vemos que esse cenário já mudou.  

Para nós, o que nos realiza é fazer o projeto de comunicação e ele dar um retorno positivo para quem nos contratou. Por exemplo, fizemos um filme de 3 minutos para a Teto, uma ONG que trabalha com habitação, e eles usaram esse filme numa campanha de crowdfunding, nas suas redes, e conseguiram uma das suas maiores arrecadações. Todo ano fazemos um filme pro bono, de graça, para alguma ONG, escolhida por concurso. O desse ano foi para a ONG Acorde, de SP, que trabalha com formação de jovens de periferia. Recebemos deles a notícia de que, por causa do filme, conseguiram fechar um grande patrocínio que já vinham tentando há um bom tempo. Então, para nós, essas são as grandes realizações. Algumas são menores, outras maiores, em termos de volume de dinheiro, mas quando acontecem e resolvem o problema de quem nos procura, ficamos muito felizes.

CINE SET:  Aqui em Manaus, há realizadores produzindo documentários e ficção. Você teve oportunidade de conhecer um pouco da produção local?

HENRY GRAZINOLI: Não, não consegui. Foi pouco tempo aí. Só ouvi falar um pouco sobre o cenário, mas não tive chance de assistir a nada.

CINE SET: Pesquisando a sua filmografia, vi que você se dedica ao documentário, mas roteirizou há alguns anos o curta de ficção Macbeto, que pareceu uma proposta interessante. Pensa em trabalhar com ficção ou retomar essa veia?

HENRY GRAZINOLI: Macbeto é um telefilme que fizemos para a TV Cultura, ele é um falso-documentário. Tenho uma carreira de curta-metragista, e nela fiz bastante ficção. Mas quanto à produção de longas, foi tudo só documentário. A minha formação como roteirista aconteceu na ficção, alguns dos curtas que roteirizei tiveram carreiras interessantes, e depois eu trouxe essas técnicas para a produção de documentário. Quanto a voltar para a ficção…

Atualmente estou contente no documentário. Na Social Docs a gente tem muita campanha, bem específicas, filmes não muito longos. E tenho projetos de voltar ao longa, dentro do documentário. Mas na área de ficção… É até engraçado, de vez em quando pintam uns convites, e não tive vontade. Mas ultimamente, têm me dado umas vontades [risos]. Talvez. Mas precisaria ser uma coisa que faça bastante sentido para mim, que tenha um propósito para me fazer voltar. Então, pode ser. Quem sabe?

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