O escritor Márcio Souza é comumente lembrado por sua produção literária e teatral. São deles obras como o romance “Galvez, imperador do Acre” e “Mad Maria”, além das peças teatrais “Dessana, Dessana” e “As folias do látex”.

Porém, Márcio também desempenhou importante papel na vida cultural cinéfila da cidade, junto a figuras como Cosme Alves Neto, Ivens Lima, Padre Luiz Ruas e tantos outros, culminando com a direção de filmes. Nesta primeira parte da entrevista exclusiva para o Cine Set, Márcio Souza relembra seu envolvimento com o cinema: o início como crítico, a criação do Grupo de Estudos Cinematográficos (GEC) e como era a Manaus daquela época para os cinéfilos.

Cine Set: Como foi o seu começo como crítico de cinema no jornal “O trabalhista”?

Márcio Souza: Eu fazia crônicas dos filmes que estavam em cartaz no “O trabalhista”, mas ele foi fechado pela ditadura. Crítica mesmo eu fui fazer no “O Jornal” em 1964, 1965. Com um detalhe: os críticos eram profissionalizados, eu tinha carteira assinada como crítico de cinema. Os jornais pagavam para você escrever a crítica. Surpreendente, né? O primeiro registro na minha carteira de trabalho foi como crítico de cinema do “O Trabalhista” e depois do “O Jornal”.

Cosme Alves Neto

CS: Sua formação de crítico veio de que maneira? Você era bem jovem quando começou, não?

MS: Eu sempre gostei de cinema. Aí em 1963, o doutor Cosme Ferreira Filho, empresário e político, achou que tinha que chamar o filho dele, o Cosme Alves Neto, para cuidar dos negócios da família. Ele já estava ficando idoso e só era ele e a irmã. O Cosme veio pra cá, mas não tinha vocação de empresário. Ele usou a Companhia Industrial Amazonense, uma grande empresa da família dele, para prosseguir com o amor que ele tinha pelo cinema. Então ele criou com pessoas daqui de Manaus o Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas (GEC). Eu comecei a escrever sobre cinema quando passei a frequentar o Grupo.

CS: Me fala um pouco sobre o GEC.

MS: O GEC nasce no contexto da Escola de Artes Cênicas e Musicais do Amazonas. O maestro Nivaldo Santiago criou, numa sala do Teatro Amazonas, essa escola. O nome era ambicioso, mas na verdade só tinha música e cinema. Tinha um curso de cinema, que era ministrado pelo Cosme e pelo Padre Luiz Ruas, que fazia crítica de cinema. No curso, havia poucos cinéfilos; a maioria era professoras de Segundo Grau querendo um título. Mas era um número grande de pessoas, e o curso tinha o apoio da Secretaria de Educação. O Cosme, com o prestígio que ele tinha, trouxe muito material da Cinemateca Brasileira e de embaixadas. Na época, as embaixadas tinham seu setor de cultura e distribuíram filmes, especialmente do Leste Europeu. No curso, por exemplo, a gente analisou vários filmes do Eisenstein.

CS: Onde funcionava o GEC?

MS: Ele funcionava onde hoje é a Faculdade de Medicina da UEA. Ali era o Palácio Rodoviário, que foi construído para ver a Secretaria de Viação e Obras Públicas na época. No último andar do prédio era a residência do governador, um apartamento grande. Havia também um auditório bem grande, com capacidade para 300 pessoas, projeção em 16 e 35mm e som perfeito, e o GEC funcionava uma vez por semana nesse espaço. Era muito longe na época. Eu morava na Monsenhor Coutinho, mas o Cosme tinha uma Rural Willys e apanhava todos os membros da diretoria do GEC para chegar mais cedo e preparar tudo. Tinha um operador dos equipamentos, o Albertino, que na verdade era técnico de rádio. Era uma pessoa muito humilde, que morava num barraco de madeira na Rua Japurá e ganhava a vida consertando rádios. Ele fez uma espécie de curso com o operador do Cine Avenida, aprendeu o ofício e se tornou o nosso operador. Ele participava das discussões também, embora ele não tivesse uma formação e tivesse só o curso primário.

CS: Afinal, ele via todos os filmes…

MS: Ele via todos os filmes e ainda revisava para ver se tinha alguma coisa quebrada para consertar antes de projetar. Os mais problemáticos eram as cópias em 16mm.

CS: Como era um dia de encontro no GEC? As descrições sempre me pareceram um pouco superficiais, pelo menos nos materiais de mais fácil acesso.

MS: Uma coisa era a Escola, o curso que falava de história do cinema, estética, técnicas. Isso era cuidado no curso, que durava um semestre.  E exibia filmes, evidentemente, para os cursos de estética dados pelo Luiz Ruas, mas também para a parte técnica e para discussão. Coisas como uso de gruas, tecnologia, fotografia, tudo isso tinha. Mas o curso não era para formar cineastas, era para formar público, para que o público tivesse discernimento do que fosse assistir. O GEC era um cineclube. Ele tinha ciclos, como ciclo do cinema japonês, por exemplo. Então nesse ciclo havia uma pessoa que hoje consideraríamos o curador. O Cosme, como presidente, era o encarregado de viabilizar e trazer os filmes, que ainda eram em 35mm, quando muito em 16mm. Era muito caro. Num ciclo desses, você trazer dez filmes, cada filme com dez latas… Para isso, ele usava o dinheiro da empresa do pai dele. Uma pessoa ficava responsável por coordenar as apresentações do ciclo, então antes da exibição do filme, essa pessoa explicava a técnica do diretor, quem ele era, e aí passava o filme para depois ter um debate sobre as obras.

CS: Você se lembra de alguma coisa inusitada sobre esses debates? Brigas…

MS: Lembro, claro! Os debates eram muito acirrados. Não todos os debates, mas tinha uma polarização política, em 1963. Essa polarização desaguou no Golpe de 1964 e que acabou levando o GEC ao fim. Mas a polarização lá não era só política, era também cinematográfica. No ciclo dos comediantes de Hollywood, por exemplo, nós vimos tudo que você possa imaginar. Nesse ciclo então tinha os partidários do Max Linder, que era considerado maior que Chaplin, ou do Buster Keaton. Tinha esse tipo de discussão, de partidários mesmo. Ou dos que eram a favor do Realismo Poético contra a Nouvelle Vague, tinha essas discussões e muitas vezes havia um cunho político. Depois, quando vem a ditadura, o GEC fica sob vigilância dos militares. Um militar era destacado para participar das sessões e esse coronel não ia lá como cinéfilo, não entendia nada do assunto. Estava lá só para ver se o GEC era um antro de comunistas. Tanto que o GEC praticamente termina com a projeção do “L’Age D’Or”, do Buñuel.

CS: É aquela história de que ele seria um filme cubano?

MS: Sim. Ele foi apreendido e o relatório que veio para a Polícia Federal, feito exatamente por esse coronel, dizia que era um filme cubano feito à moda antiga para enganar as autoridades brasileiras. Há muitos anos atrás, eu estava viajando do México para Paris e encontrei o Glauber [Rocha] no avião. Ele falou que o Buñuel estava no avião, na primeira classe, e para irmos falar com ele. O Buñuel sabia dessa história. O Glauber disse a ele que eu era do Amazonas e ele sabia. Esse troço saiu até no The New York Times. E assim o GEC se acabou, não tinha mais condições de atuar.

Terceira edição da Revista Cinéfilo

CS: Mas foi antes ou depois disso que vocês lançaram a revista “O Cinéfilo”?

MS: “O Cinéfilo” foi uma iniciativa do José Gaspar, que era da diretoria do GEC. Todo mundo colaborava. Meu pai que fazia, ele tinha uma gráfica e fazia de graça. E tinha saída, tinha gente que comprava. A gente mesmo comprava também [risos]. Tinha de tudo lá, artigos, como por exemplo os do Guanabara de Araújo, que fazia crônicas de cinema sobre um período de Hollywood, as produções bíblicas e outros temas. Eram crônicas informativas, não críticas. O Gaspar era um bom crítico, aprofundava os textos, avaliava questões de estética no cinema. O Ivens [Lima] já era mais impressionista, muito ligado ao cinema americano.

CS: E do GEC vocês foram abrindo espaço para a cinefilia em outros meios, certo?

MS: O Ivens tinha um programa de rádio. Aliás, havia dois programas sobre cinema no rádio: “A hora do cinema” e o “Cinemascope no ar”, um na Rádio Baré e o outro na Rádio Rio Mar. Um era feito pelo Joaquim Marinho e às vezes eu colaborava, e o outro era o Ivens Lima. A gente fazia os programas no mesmo horário e era a maior concorrência [risos]. Mas o Ivens tinha acesso à Empresa Bernardino e ele ia lá com gravadores enormes para gravar os trailers e passar no programa dele na rádio. Às vezes fazíamos atividades em conjunto, como, por exemplo, no lançamento de filmes brasileiros como “Vidas secas” ou “Deus e o diabo na terra do sol”. Como nós éramos amigos do Glauber [Rocha], do Nelson [Pereira dos Santos], a gente queimava uns dois domingos fazendo propaganda, passava a trilha sonora dos filmes nos programas, o Ivens passava o trailer. Agora era difícil fazer tudo isso e chegar à porta do Cine Avenida com a Dona Iaiá, a maior crítica de cinema da cultura amazonense. Era a mulher do dono do cinema, uma figura, com a roupa combinando, cheia de joias e uma maquiagem carregada. Ela ficava na porta do Cine Avenida, às vezes sentada numa cadeira de balanço. Você chegava lá e ela dizia “Meu filho, você vai assistir a esse filme? Só tem miséria! Um horror!”. Ou então você chegava, era um dramalhão mexicano e ela dizia “Já gastei uns dez lenços. O filme é muito lindo. Chorei muito”. Ela eventualmente fazia contrapropaganda dos filmes que o marido dela passava, na porta do cinema.

CS: E como vocês conseguiram fazer essas articulações para o GEC nos jornais, nas rádios?

MS: Tinha muitos amigos nossos que ajudaram. O Clube da Madrugada, por exemplo, era muito influente e nos abria portas. O Erasmo Linhares, escritor, era uma pessoa importante da Rádio Rio Mar e assistia aos filmes com a gente. Estamos falando de uma Manaus que não existe mais. A cidade naquela época era pobre, mas tinha quatro jornais, inclusive com jornais vespertinos e matutinos. Ela tinha três rádios, uma delas FM, a primeira do Brasil. Tinha oito livrarias. Doze cinemas. Todos os filmes que passavam aqui passavam no mundo inteiro, não era só filme americano. Eu vi filmes poloneses, durante a ditadura mesmo. Vi o ciclo todo dos russos, do pós-guerra, o cinema francês, a Nouvelle Vague inteira eu vi no cinema! Às vezes eu perdia no Cine Avenida, porque era um filme por dia, daí tentava ver no Odeon ou Vitória, ou no Ideal.

CS: E dava gente nas sessões?

MS: Dava! Ficava um ou dois dias em cartaz num cinema do Centro, depois num de bairro e o filme ia embora. O que durava mais era “Os dez mandamentos” ou “Ben-Hur”, que ficava uma semana. Tínhamos o Cine Avenida, que era um cinema engraçado, sem ar refrigerado e com um ventilador enorme embaixo da tela. As moças tinham pavor, porque despenteava aqueles cabelos armados dos anos 1960. Havia o Cine Odeon, com ar refrigerado. Os dois projetavam Cinemascope, uma projeção de qualidade. Outra coisa da cidade é que ela era culturalmente coerente. Todas as classes sociais entendiam a questão da cultura na cidade. Não tinha o apartheid que tem hoje. Você tem em torno de 500 mil pessoas aqui que não nativas e conhecem a cultura; o resto é imigrante, que não sabe nada sobre a cidade, assim como as novas gerações, que têm que suar muito para saber, até porque onde estão os filmes do passado? Cadê os arquivos? Tinha gente de todas as classes sociais no GEC, por exemplo, desde pessoas da classe média alta até eu, que sou filho de operário. Ainda assim eu tinha acesso, estudava no Colégio Dom Bosco, onde também estudavam os filhos da elite e que era a escola mais cara de Manaus. O sindicato do meu pai pagava bolsa para os filhos dos trabalhadores, por isso eu estudei lá. Inclusive, tinha um cineclube lá, o Cineclube Dom Bosco, para o escândalo de alguns padres, quando passava “A Doce Vida” ou “Madre Joana dos Anjos”, que escandalizaram a Igreja Católica. As freiras pediram a proibição de “Madre Joana dos Anjos”. E todos esses cineclubes gravitavam em torno do GEC, que cedia os filmes.

» Não perca a segunda parte da entrevista exclusiva com Márcio Souza. Nela, o autor fala sobre sua carreira como diretor de cinema, além de comentar temas atuais do cinema nacional e local no Amazonas.