Hoje é dia das crianças! Então vamos celebrar com um filme cheio de crianças assassinas, deformadas e traumatizadas… Porque aqui é o Especial Terror do Cine Set e o tema é o filme Os Filhos do Medo (1979), do mestre David Cronenberg.

Vale a pena começar fazendo um pequeno paralelo: Os Filhos do Medo está completando 40 anos de lançamento. E o que mais estava acontecendo no mundo do cinema naquela época?

Em 1979, o drama Kramer vs. Kramer, dirigido por Robert Benton, foi o vencedor do Oscar de Melhor Filme e marcou época como uma das primeiras produções do cinemão hollywoodiano a discutir de forma aberta, adulta e séria temas como divórcio e o novo papel da mulher na sociedade. O filme promoveu discussão, foi sucesso de público e ainda rendeu Oscars para Dustin Hoffman, como Melhor Ator, e para Meryl Streep, como Melhor Atriz Coadjuvante – as primeiras estatuetas das carreiras de ambos –, que interpretam o casal que passa por um doloroso processo de separação e a subsequente luta pela custódia do filho.

Ora, o que tem Kramer vs. Kramer a ver com Cronenberg e Os Filhos do Medo? Bem, o cineasta canadense chegou a afirmar certa vez que o filme era o “seu” Kramer vs. Kramer: “Só que o meu filme é mais realista”, completou.

HORROR PARA OS PAIS, TRAUMA PARA OS FILHOS

Os Filhos do Medo é um filme muito pessoal para o seu diretor. A gênese do projeto, de acordo com o próprio Cronenberg, foi o fim do seu primeiro casamento, de sete anos, com Margaret Hindson. Ela trabalhou na produção dos primeiros curtas do diretor e lá iniciaram seu relacionamento. O divórcio e a luta pela custódia da filha do casal alimentaram o novo conto de horror do diretor. Àquela altura, Cronenberg já tinha realizado Calafrios (1975) e Enraivecida na Fúria do Sexo (1977), e já se estabelecia como cineasta de terror.

Na trama do filme, a família Carveth está em processo de dissolução. Frank (Art Hindle), o protagonista, tenta levar a vida e cuidar da filha pequena enquanto sua esposa, Nola (Samantha Eggar), está internada em um hospital psiquiátrico após sofrer um colapso nervoso. A instituição é dirigida pelo doutor Hal Raglan (Oliver Reed), criador de uma terapia controversa. Segundo a teoria do médico, estados emocionais reprimidos, como raiva, quando extravasados, podem provocar manifestações físicas no paciente, o que é demonstrado na cena de abertura do filme.

O que já estava ruim se transforma em um pesadelo quando Frank descobre machucados na sua filha e estranhos assassinatos acontecem. A investigação leva Frank  a descobrir a terrível verdade sobre a sua ex-esposa e a terapia do doutor Raglan, além de enfrentar um ataque de crianças mutantes e bizarras, sedentas de sangue.

A EVOLUÇÃO DE UM CINEASTA

Estilística e tematicamente, Os Filhos do Medo representou um salto na carreira de Cronenberg. Em termos profissionais, marcou a primeira vez em que o cineasta trabalhou, por exemplo, com o diretor de fotografia Mark Irwin e o compositor musical Howard Shore, que se tornariam colaboradores muito importantes em sua carreira.

E sobre o tema… Seus filmes anteriores tinham uma pegada meio exploitation, sem dúvida influenciada pelo baixo orçamento. Os Filhos do Medo já teve um orçamento um pouco maior, e traz consigo um maior classicismo na narrativa, mais elegante e profunda.  Claro, há alguns arquétipos do terror na história: o doutor Raglan não deixa de ser uma variante do “cientista louco”. No entanto, a forma como Cronenberg lida com ele, além de outros elementos, já é mais orgânica do que nos seus longas anteriores.

O interesse do diretor pelo “horror corporal”, aqui, dá um passo à frente. Imagens de horror físico já tinham impressionado o público em Calafrios e Enraivecida…, mas o que Cronenberg cria em Os Filhos do Medo é mais poderoso, intenso e perturbador. A propósito, uma das cenas mais perturbadoras e memoráveis – a “lambida” – foi contribuição de Eggar… Outro passo além seria dado em Videodrome (1982), até o cineasta chegar ao ápice da deformação corporal com A Mosca (1986), seu maior sucesso.

UM FILME RAIVOSO

Não é todo cineasta que cria uma “especialidade” dentro de um gênero: Com Os Filhos do Medo, David Cronenberg de fato tomou para si o título de “rei do horror físico” que detém até hoje. E não se engane, o filme é realmente intenso. A meia hora final, especialmente, é cheia de momentos que ficarão na sua memória, quer você goste do filme ou não.

Porque, de fato, Cronenberg não demonstra estar preocupado se o público gosta ou não de sua obra. O filme foi bem nas bilheterias canadenses no lançamento, mas provocou discussão e polêmica, assim como as obras anteriores do diretor.

É difícil não observar um pouco de misoginia no filme: um de seus pontos de controvérsia é a caracterização da personagem Nola, pela qual transparece a raiva do diretor/roteirista da sua ex-mulher na vida real. Ainda sim, muitas vezes os acusadores do filme relativizam ou minimizam o impacto de um homem – o doutor Raglan – sobre a perturbação mental da personagem.

E se as imagens perturbadoras de parto e nascimento do filme alfinetam um nervo profundo na psique do espectador… Bem, Cronenberg acredita no horror físico para todos, homens e mulheres. Sem dúvida é um filme raivoso, um drama que anda de mãos dadas com o terror, e do qual o segundo emerge até naturalmente do primeiro.

O desfecho deixa claro que o horror provém dos traumas que infligimos a nós mesmos e aos outros. Arte é mais poderosa quando revela o interior do artista, eu realmente acredito nisso. Mesmo que, de vez em quando, esse interior não seja lá muito bonito ou agradável de se ver. Em Os Filhos do Medo, Cronenberg se expôs, pela primeira vez, em um de seus filmes. Por consequência, acabou fazendo o seu verdadeiro primeiro grande filme de terror.