Todo mundo se lembra de onde estava em 11 de setembro de 2001. Eu estava na faculdade, na UFAM, onde cursava Biologia – não me perguntem por que alguém que hoje escreve sobre cinema cursou Biologia, é assunto para outra hora. Enfim, de repente, no intervalo entre uma aula e outra, notei alguns dos meus colegas em volta de uma amiga sentada numa cadeira, e ela parecia meio perturbada. Perguntamos a ela o que tinha acontecido, e ela falou de uns aviões batendo nos prédios do World Trade Center em Nova York. “É capaz de, depois disso, começar a Terceira Guerra Mundial”, ainda me lembro dela dizendo essa frase. E se foi impressionante para nós, que somos brasileiros e, a princípio, não tínhamos nada a ver com aquele atentado, imaginem como foi para os americanos e para a sua sociedade.

As sociedades humanas geralmente exorcizam (ou pelo menos expõem) seus traumas através da arte e do cinema em particular. E curiosamente, quase sempre são os filmes fantásticos – os de ficção-científica, de terror ou de ação – que se tornam as vitrines mais representativas para a psique das sociedades que sofreram grandes traumas. Ora, o Godzilla nos anos 1950 não era uma óbvia alegoria do terror da bomba atômica vivido pelos japoneses em Hiroshima e Nagasaki? É confortável, para o publico de cinema, experimentar essas catarses na tela. Depois de um tempo, podemos dar risada e nos sentir mais à vontade com os acontecimentos que um dia nos deram muito medo. O tempo, como diz o chavão, cura tudo.

Alguns artistas, porém, não querem oferecer catarses fáceis. Eles querem perturbar o publico, mesmo que só um pouquinho – bem, alguns querem perturbar muito, mas esse raramente foi o caso de Steven Spielberg, o “Sr. Filme Pipoca” que divertiu e emocionou o publico com seus filmes dos anos 1970, 1980 e 1990.

Porém, quando Spielberg lançou Guerra dos Mundos em 2005, o 11/09 tinha acontecido e de repente, o mundo, e principalmente os Estados Unidos, não pareciam mais tão seguros. Assim, ele rodou o filme rapidamente, fez uma obra nervosa repleta de grandes momentos – e alguns nem tanto – e fez um filme que contrasta com seus outros trabalhos envolvendo alienígenas. Lá atrás, Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) e E.T.: O Extraterrestre (1982) mostravam de forma esperançosa o contato entre os diferentes. Em Guerra dos Mundos, não, ali o negócio era realmente… bem, uma guerra. Ali vemos um cineasta disposto a perturbar.

Baseado no livro de H. G. Wells publicado no fim do século XIX – e que chegou a ser interpretado como uma alegoria do colonialismo britânico – o filme mostra a história de uma típica família americana. O pai, Ray (Tom Cruise), é um moleque crescido que nunca aprendeu responsabilidade. A filha Rachel (Dakota Fanning, meio irritante) é uma menininha esperta e quase neurótica. Robbie (Justin Chatwin) é o filho adolescente rebelde. Num feriado em que todos ficam juntos, tem inicio a invasão alienígena. Poderosas máquinas saem do subsolo da Terra e da rua onde Ray mora, e começam a destruir e matar e depois a transformar o planeta.

Guerra dos Mundos começa muito bem. Sua primeira metade é uma corrida de montanha-russa sem tréguas e repleta de grandes momentos cinematográficos. Destacam-se o primeiro ataque dos Tripods (as máquinas dos ETs) e a cena incrível na qual a câmera de Spielberg passeia ao redor do carro da família em movimento desenfreado pela estrada. O diretor até nos faz temer o que não vemos – a queda do avião, por exemplo – e depois revela o ocorrido com máximo impacto, num momento que comprova que não mostrar é sim, uma ferramenta muito efetiva.

Na segunda metade, é verdade que o filme decai um pouco, embora ainda permaneça sólido. Também há uma cena próxima ao fim que não consegue evitar uma glorificação do exército americano. E na maior das polêmicas – (SPOILER) – o filho do Tom Cruise não morre no final, reaparecendo vivo de forma meio inexplicável. Tenho certeza que muita gente torce o nariz para o filme por causa desse momento.

Mas é um momento ruim o suficiente para estragar o filme? Para mim, não. Aliás, é curiosa a forma como se dá a dinâmica da família e a evolução do personagem de Cruise. Ao longo do filme, Robbie começa a sentir vontade de se alistar no exército para ajudar no contra-ataque às máquinas alienígenas. Ray, no entanto, é movido pelo desespero. Cruise não tem nada de homem comum na vida real, mas a escalação dele no papel é interessante porque vai contra a sua imagem de herói bonzão. Ray é o oposto do Ethan Hunt, é o oposto do Maverick.

Em outro filme, feito em outros tempos, talvez Robbie fosse o herói da história. Neste filme, o motor da narrativa é o medo e os personagens só podem tentar sobreviver. Não há “jornada do herói” para Ray, apenas tentativas débeis de se aproximar dos filhos – e ele mais falha do que acerta nessa aproximação – e de sobreviver. Isso é representado de forma impecável na melhor cena do filme, e que não tem efeitos especiais. É a cena em que uma multidão ataca o carro da família, um dos poucos ainda funcionando na região. É um momento típico de um filme apocalíptico, quando o homem se torna o inimigo do homem, porém mais potente que a maioria dessas cenas.

Não se pode esquecer também que, mais à frente na história, Ray mata o personagem vivido por Tim Robbins quando este se torna uma ameaça para a sobrevivência do protagonista e da sua filha. É um momento sombrio como poucos da carreira de Spielberg, e mostra uma disposição do cineasta para se arriscar e refletir na sua obra fantástica o estado de espírito dominante na época. No fim não sabemos se Ray aprendeu a ser um bom pai, sabemos apenas que ele aprendeu a matar para proteger seus filhos.

Depois de tanta escuridão, é assim tão ruim oferecer um pouco de luz? Aliás, o desfecho do filme é fiel ao do livro, que também termina com um pouco de esperança. Wells encerrava o livro dizendo que invasões (e por consequência, qualquer forma de colonialismo) estariam fadadas ao fracasso, muitas vezes por razões impossíveis de discernir pelo ponto de vista dos invasores – afinal, os ETs morrem ao entrarem em contato com uma ameaça não prevista, os micro-organismos e bactérias da Terra.

No fim das contas, a humanidade sobrevive de alguma forma, e é isso que Spielberg parece dizer com seu final. Seja o 11/09 ou algum desastre natural, há a possibilidade de recomeçar e reconstruir. Sem isso, o filme viraria uma obra completamente depressiva e niilista – isso seria mesmo bom? Do jeito que está, Guerra dos Mundos é um filme imperfeito, mas visceral, feito em estilo de guerrilha e mais interessante do que a maior parte do publico lhe dá crédito. E de todos os filmes que vi, é um dos que melhor consegue recriar aqueles sentimentos de perturbação e medo experimentados quando ocorre um desastre ou algo impactante como o 11/09. É divertido experimentar essas sensações de forma segura, mas esse processo também é um pouco perturbador, e para seu mérito, Steven Spielberg não se esquece disso.