O filme romeno “Instinto materno” traz ao público algo cada vez mais precioso ao grande cinema: a capacidade de trabalhar nuances de situações e personagens em várias camadas diferentes. Só assim para entender a obra como um drama familiar, uma história de amor e uma crítica à hipocrisia e dominância do dinheiro na sociedade contemporânea, ideias essas que reverberam através do filme sem nunca serem jogadas na cara do espectador explicitamente.

Em “Instinto materno”, Luminita Gheorghiu interpreta Cornelia Keneres, uma mulher rica que passa o tempo entre o trabalho de arquiteta, festas, concertos e tentando dominar o máximo possível a vida do filho, Barbu (Bogdan Dumitrache). Para tanto, Cornelia dá pitacos sobre a namorada do filho, Carmen (Ilinca Goia), e compra favores de sua empregada, que também é responsável pela limpeza no apartamento de Barbu. A rotina de frivolidades acaba quando ele causa um acidente de trânsito e vitima uma criança. A partir daí, Cornelia utiliza todos os recursos (legais e ilegais) para poupar o filho da prisão.

A intensidade da atuação de Gheorghiu no papel principal impressiona. Ela se mostra dominante em todas as cenas, mesmo nas poucas em que sua personagem expõe alguma fragilidade. Sua Cornelia não tem pudores ao maquinar todas as formas possíveis de preservar “seu bebê” (que já tem mais de trinta anos!), o que parece totalmente reprovável até o momento em que o espectador se questiona que mãe não faria isso pelo próprio filho se tivesse a chance. Tanto quanto salvá-lo da condenação, o que Cornelia parece buscar é a concretização de seu poder: ela se põe acima da justiça ao manipular policiais, comprar testemunhas, abusar de manobras capciosas por conselho do advogado, tudo para que os acontecimentos sigam da forma como acredita que deve seguir.

Ainda assim, o amor de Cornelia é claramente verdadeiro e incondicional, o que permite certa identificação com a personagem; porém, os detalhes impressos ao longo do filme mostram o quanto o sentimento de posse que o acompanha gerou marcas negativas no caráter de Barbu. Este segue por quase todo o filme como um elemento nulo, empurrado de um lado para outro pelas decisões da mãe, como se pouco ou nada tivesse a ver com a morte do menino que atropelou e se contentando em resmungar ou fugir da situação. Nesse sentido, a atuação de Bogdan Dumitrache serve de contraponto perfeito à força de Gheorghiu, expressando muito bem a relação de poder desigual entre mãe e filho.

A partir do amor doentio de Cornelia pelo filho, “Instinto materno” aborda também como o conceito de família acaba deturpado quando não há limites nesse sentimento. Por um lado, a mãe tem uma carreira bem sucedida, mas fala como se suas expectativas de vida só pudessem ser de fato atingidas a partir dos feitos do filho. Este, por sua vez, não tem a maturidade para lidar com o acidente que engrena a trama e nem de dar um rumo à própria vida, uma vez que a figura paterna que poderia servir de ponto de equilíbrio é igualmente fraca. Um diálogo constrangedor entre Cornelia e a namorada de Barbu, Carmen, acaba revelando informações íntimas e estranhas sobre ele, ecoando ainda mais os prováveis efeitos psicológicos da relação disfuncional da família.

Outra impressão que fica ao espectador é que este é um espião de toda a ação em “Instinto materno”. Isso se dá principalmente pelo uso regular da câmera na mão que treme, desfoca a imagem, mete-se no banco de trás do carro de Cornelia como que uma carona e capta momentos pequenos, mas simbólicos, tal como quando ela checa a limpeza do banheiro no apartamento de Barbu. A sensação é de que estamos muito próximos da trama, consumidos por ela da mesma maneira que Cornelia parece consumir todos ao seu redor. Até mesmo os momentos de corte seco contribuem nesse sentido, pois os intervalos preenchidos pelo não dito também expressam algo sobre a relação da família na qual a mãe comanda tudo, o pai condescende (não por acaso, aparece pouco no filme) e o filho não consegue ser um adulto completo.

Curioso ainda é tentar travar uma ligação entre a posição socioeconômica da família de Cornelia em oposição a da vítima do acidente de Barbu e a situação atual da Romênia, que saiu de um regime comunista e vive hoje os prazeres (e dores) do capitalismo. Tal subtexto pode fugir ao espectador menos inteirado sobre a contextualização histórico-social, mas não prejudica de maneira nenhuma as demais camadas de significação do filme, denotando um cuidadoso trabalho num roteiro que trata de temas universais a partir dos locais.

Estrutura em camadas é um termo apropriado para descrever “Instinto materno”. Intrigante, até o final do filme diz muito tendo tão pouco como base. Os minutos finais deixam o espectador sem saber ao certo se Barbu aceita jogar o jogo imposto pela mãe, agindo de maneira a parecer o menos culpado possível, ou se toma para si a responsabilidade por seu erro. A dor de Cornelia, por sua vez, será real ou não? As respostas não estão dadas, e justamente por isso as possibilidades reverberam na mente do espectador por tanto tempo.

NOTA: 9,0