Filosofia e cinema se encontram de maneira inusitada em “Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno”, do sociólogo esloveno Slavoj Žižek. A obra, lançada no Brasil pela Boitempo, reúne textos sobre algumas produções do século XX obrigatórias para os amantes do cinema: Krzysztof Kiéslowski, Andrei Tarkovski, Alfred Hitchcock e David Lynch são os diretores cuja filmografia é analisada por Žižek, sempre com análises inabituais. O autor engendra determinados filmes de cada auteur com conceitos e pontos de embasamento já conhecidos de quem acompanha a obra do esloveno, como a predileção pela psicanálise e o olhar moderno sobre o marxismo.
A proximidade com um cinema mais popular também está presente na obra de Žižek. Em “Lacrimae Rerum”, o prefácio contempla a noção de grande cinema hollywoodiano como aparato ideológico e as proposições filosóficas da trilogia “Matrix” são temas do ensaio que fecha o livro. A mistura entre pop e erudito e entre as diferentes camadas possíveis de leitura das obras citadas caracterizam a obra, abrindo os olhos do leitor para ideias que, de outra maneira, provavelmente não passariam pela mente dos espectadores. A riqueza de citações a conceitos teóricos pertencentes à sociologia, filosofia, literatura e, claro, cinema garante a profundidade do livro que, embora pequeno, é bastante denso.
O ensaio sobre Kielowski, o primeiro do livro, é o maior exemplo disso. “A teologia materialista de Kieslowski” demanda ao leitor conhecimento razoável da filmografia do polonês, em especial, de “O Decálogo” (Dekalog, 1989). Se o leitor não estiver alinhado ideologicamente às proposições de Žižek, no geral com forte inspiração em Jacques Lacan e Karl Marx, é necessário pelo menos exercitar a “compra” das ideias apresentadas na fundamentação do que seria e de como se manifesta a teologia materialista na obra do diretor.
Por essas e outras que, ainda que “Lacrimae Rerum” possa parecer por oras muito “viajante”, sua principal qualidade é justamente invocar ao leitor questionamentos, não importa se contra ou a favor das colocações de seu autor. As dúvidas e asserções curiosas fazem com que lancemos um olhar mais aguçado para o que se pode extrair e refletir sobre os filmes, gerando saldo positivo na leitura. Porém, é necessário atenção, pois os textos demandam certa paciência para quem não está acostumado a um estilo de escrita que nem sempre vai direto ao assunto nas páginas iniciais de cada ensaio.
A recompensa, no entanto, chega quando nos deparamos com colocações interessantes como a que vemos, por exemplo, no capítulo dedicado a Hitchcock e os posteriores remakes de seus filmes: a de que os filmes do diretor britânico permitem um alto grau de subjetividade para que o espectador interprete seus elementos componentes livremente, e como isso garante com que nos intriguemos com eles por décadas (o que não acontece com os remakes, que geralmente contam com expressões mais literais dos conflitos e narrativa no geral).
A análise desse e de diversos pontos da filmografia de Hitchcock e outros diretores são o pontapé e o objetivo final de uma apurada reflexão sobre o cinema enquanto elemento de representação sociopolítica. No ensaio seguinte, sobre o cinema de Tarkovski, torna-se ainda mais claro como a subjetividade dos temas dos filmes dialoga com o que a linguagem cinematográfica pode externar ao espectador.
Dessa maneira, nesse ensaio, o autor aborda o modo de apresentar a relação entre o vazio e um algo, o qual ele intitula de “Coisa”, dentro da diegese fílmica. Até chegar ao cerne da questão em Tarkovski, Žižek passa por filmes tão diversos quanto “Guerra nas Estrelas: Episódio IV – Uma nova esperança” (Star Wars: Episode IV – A new hope, 1977) e “Impacto profundo” (Deep impact, 1998). Só aí chegamos a “Solaris” (Solyaris, 1972), “Stalker” (idem, 1979) e “Nostalgia” (Nostalghia, 1983).
Em “David Lynch ou a arte do sublime ridículo”, ele aposta novamente na discussão sobre a apresentação de camadas diversas aos filmes. Para Žižek, as sutilezas da linguagem cinematográfica podem levar a interpretações opostas dependendo do espectador. No cinema de Lynch, e ele foca bastante em “A estrada perdida” (Lost highway, 1997), essa estratégia serve também à oposição entre um universo comum, medíocre e alienado e um outro, perverso, violento, mas ainda assim, apoteótico. Para falar de Lynch, o autor passa por Lacan, “Casablanca” (idem, 1942), “As pontes de Madison” (The bridges of Madison County, 1995) e a natureza das femme fatales no cinema.
Fechando “Lacrimae Rerum”, temos o ensaio sobre a noção de realidade e ideologia na trilogia Matrix, “Matrix ou os dois lados da perversão”. A vida comum como performance, a avaliação crítica da noção de indústria cultural aplicada aos filmes das irmãs Wachowski, a Matrix como alegoria lacaniana para as forças sociais fora de nosso controle, a noção de real para Kant e Hegel e muito mais são tópicos que o leitor/espectador encontra no livro. A citação a outros filmes é menor nesse ensaio, embora ainda vejamos a lembrança a “O show de Truman” (The Truman show, 1998), algo de Hitchcock e westerns spaghetti.
Como figura relativamente pop, Slavoj Žižek e seu “Lacrimae Rerum” é uma boa pedida para quem busca ler sobre cinema, mas quer variar os pontos de vista de livros mais técnicos, livros com entrevistas de diretores ou de teóricos voltados exclusivamente à teoria fílmica. O background de Žižek e sua ampla capacidade de conectar ideias de pensadores diversos garantem uma leitura no mínimo curiosa para quem se aventura nessa obra.
Belíssima explanação. De uma profundidade cada vez mais rara nas resenhas literárias.