A morte de Silvino Santos completou 50 anos no último dia 14 de maio. A trajetória rica do pioneiro do cinema na região amazônica aparece em detalhes no manuscrito “Romance da Minha Vida”, de autoria do próprio diretor dos clássicos “No Paiz das Amazonas” e “Amazonas, o Maior Rio do Mundo”. Parte integrante do acervo do Museu Amazônico, da Universidade Federal do Amazonas, a obra passou por dois processos de transcrição com propostas diferentes de publicação.
A primeira transcrição foi feita em uma parceria entre a professora Selda Vale da Costa, autora de obras fundamentais sobre a vida do diretor como “Eldorado das ilusões. Cinema e sociedade. Manaus: 1897-1935″ e “No Rastro de Silvino Santos”, e o pesquisador e jornalista cultural Sávio Stoco, um dos responsáveis pelo processo de restauração de “No Paiz das Amazonas” e autor da tese de doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP, “O cinema de Silvino Santos (1918-1922) e a representação amazônica: história, arte e sociedade”.
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Neste trabalho de transcrição, o manuscrito ganhou atualização de linguagem e termos, correções ortográficas, além de introdução e informações de rodapé com o intuito de contextualizar o leitor sobre os assuntos abordados. Fotografias de Silvino e dos filmes dele também seriam incluídas assim como a íntegra da primeira página escrita pelo próprio português.
O problema é conseguir financiamento para a publicação nos moldes pensados pela pesquisadora. “Há uns anos, fiz a solicitação à EDUA (Editora da Universidade Federal do Amazonas), mas, não houve interesse. (…) Até pensei em levar para outra editora, cheguei a falar com a Valer, mas, por ser uma filha da Ufam, acho que precisa sair por lá”, declarou Selda em entrevista ao Cine Set.
TRANSCRIÇÃO DO MUSEU AMAZÔNICO
Localizado na Avenida Ramos Ferreira, no Centro de Manaus, o Museu Amazônico conta com um acervo histórico do diretor, existente desde 1991, incluindo, fotos da época, negativos de filmes, instrumentos de trabalhos e correspondências. São, aproximadamente, 1.400 itens. O manuscrito “Romance da Minha Vida” é um destes tesouros e se tornou objeto de trabalho do diretor do museu, Dysson Teles Alves.
Nos últimos quatro meses desta pandemia, ele se dedicou a transcrever a obra. “Estou fazendo com a visão de um historiador que vê o material como um relato histórico, respeitando a linguagem e gramática da época para tornar o mais próximo da realidade do autor naquele momento, mas, sem qualquer tipo de intervenção. Fiz apenas um glossário para identificar certas expressões típicas da época. São coisas aparentemente simples, mas, com muito significado”, declarou.
Dysson Alves pretende publicar a transcrição do manuscrito no boletim informativo do Museu Amazônico. “Temos um acervo extremamente rico sobre a história da Amazônia com pessoas do resto do Brasil e do mundo afora vindo para cá para pesquisar. O nosso trabalho é dar luz novamente a este acervo e tem dado bons resultados com maior fluxo de pessoas e um interesse crescente no museu”.
Para o diretor, “apesar de não ser um achado inédito, acho que o manuscrito foi redescoberto”. Porém, a visão de que a obra teria sido encontrada pelo Museu Amazônico como se tivesse perdida, algo divulgado por veículos de comunicação do Amazonas, desagradou Selda.
“Não sou contra a publicação. Lamento que saia no formato de boletim porque fica muito pobre, como se fosse um documento, mas, não vejo problemas em publicar dentro das possibilidades, mas, incomodou anunciar como se tivesse perdido. O que mais me doeu, entretanto, foi pensar que, na Ufam, há departamentos em que as pessoas não sabem o que tem lá dentro”, afirmou.
‘ROTEIRO DE CINEMA’
Independente dos pontos de vistas diferentes, Selda e Dysson concordam sobre o valor inestimável de “O Romance da Minha Vida”. A obra serviu de base para o docudrama dirigido por Aurélio Michiles, “O Cineasta da Selva”, em 1997 e protagonizado por José de Abreu. Como diz o diretor do Museu Amazônico, o manuscrito é um “roteiro de cinema”. “O Silvino faz um relato histórico dos lugares por onde passava, era uma radiografia daquele momento de Manaus, Lisboa, Iquitos”.
Selda trabalha desde os anos 1980 na pesquisa sobre a vida e obra de Silvino. “Colecionamos jornais, cartas, depoimentos de familiares. Fomos juntando como um quebra-cabeça para criar uma trajetória tanto da vida pessoal quanto da produção dele. Mas, o manuscrito é ele, o ponto de vista dele. Há muita coisa jocosa, engraçada que não se encontra em matérias de jornais. Ali, você tem a percepção de quem é o artista: o Silvino era um cara do mundo, algo que pode ser estranho para muita gente. Um senhor que viveu em Paris por muito tempo, instruidíssimo”, declara a professora.
O início da carreira audiovisual de Silvino ao lado do seringalista Júlio César Arana na região do Putamayo, onde mais de 30 mil indígenas foram mortos em regime de escravidão pela empresa Peru Amazon Company, para coletar 4 mil toneladas de borracha, ganha análise na contextualização do manuscrito feita por Sávio e Selda. “Quando se lê, acha-se que está tudo bem, sem referência ao massacre indígena – o Roger Casement fazia o mesmo. As fotos e imagens que o Silvino capturava fazia parece tudo alegre – ele, por exemplo, nada comenta sobre a imagem das algemas, diz que não viu nada de torturas. Na verdade, o Silvino foi contratado para o idílico e não para retratar o massacre, e ele entrou nessa”, recordou Selda, afirmando ainda que a visão do português em 1924 já era mais crítica sobre o assunto.
“Silvino, entretanto, nunca foi da elite nem usufruiu de qualquer relação de poder. Fez vários filmes para o governo da época, não era um pobre coitado. Apesar de termos muito conhecimento sobre sua trajetória, o manuscrito é o depoimento dele. Vale a pena publicar como um romance”, completou Selda.
O Laboratório de Pesquisa em Arquivologia, História e Patrimônio da UFAM, em parceria com o Museu Amazônico da…
Publicado por TV UFAM em Quarta-feira, 30 de setembro de 2020
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