Depois de dois suspenses apenas medianos – Sem Evidências (2013) e À Procura (2014) –, o diretor canadense Atom Egoyan reencontra a intensidade de seus melhores trabalhos em Memórias Secretas, com a ajuda luxuosa (e subestimada pelo Oscar) do mestre britânico Christopher Plummer (Toda Forma de Amor, Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres). Com estreia nacional nesta semana (Manaus, sem surpresa, ficou de fora), o longa, lançado no fim do ano passado, revisita as tensões raciais e o confronto com atos do passado que marcam a filmografia do diretor de O Doce Amanhã (1997) e Ararat (2002).

Zev Guttman (Plummer) é o improvável e quase pitoresco protagonista de uma história de vingança com raízes na Alemanha nazista. Com avançados sinais de senilidade, ele acorda todos os dias num asilo de luxo, sem lembrar sequer do falecimento da esposa, ocorrido há poucos dias. Mas Zev tem uma missão: em parceria com o amigo Max (o grande e esquecido Martin Landau, de Crimes e Pecados e Ed Wood), ele carrega consigo uma carta que, além de lembrá-lo todos os dias de quem é, o leva a fugir do asilo em busca de pousos inusitados: hotéis, terminais de ônibus, uma loja de armas. As coisas se explicam quando ele encontra um homem chamado Rudy Kurlander (outro ator fabuloso e pouco conhecido: Bruno Ganz, de Asas do Desejo e A Queda!: As Últimas Horas de Hitler): Zev e Max querem um acerto de contas com o passado – ou, mais especificamente, contra o homem que ordenou a morte de seus familiares no campo de concentração de Auschwitz.

É esse idoso frágil e alquebrado que, com determinação feroz, percorre o país inteiro atrás de quatro possíveis Rudy Kurlanders: ex-oficiais nazistas que, de posse da identidade de vítimas do Holocausto, emigraram para os Estados Unidos e tiveram vidas longas e confortáveis, sem qualquer tipo de expiação por seus crimes.

Trata-se do tipo de material que faria Atom Egoyan (ou Spike Lee) suspirar, e o cineasta de origem egípcia o utiliza para entregar algumas de suas cenas mais memoráveis desde Ararat: o encontro angustiante com o primeiro Rudy, o engano quase fatal com o segundo, a longa e memorável sequência final. Pode-se argumentar que o roteiro é pouco sutil, explicando demais certas coisas que seria melhor deixar quietas: a última cena, em que Landau revela que sabia de tudo, é o pior exemplo. Mas, em outros momentos, os instintos de Egoyan funcionam maravilhosamente: o uso inteligente do som, como no confronto entre Zev e John Kurlander (Dean Norris, de Breaking Bad e Under the Dome), e metáforas visuais certeiras, como o espelho d’água e a represa sendo demolida.

O elenco está à altura do diretor e do protagonista Plummer – o que você já percebeu, pela quantidade de elogios nos últimos parágrafos. Mas ainda há espaço para o veterano, esse sim obscuro, Jürgen Prochnow (all the way desde Duna, de David Lynch, 1984). Infelizmente, Prochnow, que tem um papel crucial na trama, sofre com a maquiagem equivocada, lembrando o Armie Hammer de J. Edgar (2011) – se não chega a parecer o sobrevivente de um incêndio, como naquele filme, a pesada camada de pele e rugas sobre o rosto do ator prejudica o impacto dramático de um dos pontos culminantes do filme.

São defeitos menores, diante da inteligência e eficácia da concepção de Egoyan. E há duas coisas em Memórias Secretas que estão acima de críticas: o trabalho de Christopher Plummer, no mesmo nível superlativo de sua fase recente, mas com um papel à altura de seu vasto arsenal (pense em cenas como a primeira vez em que ele ouve sobre a morte da mulher, ou o diálogo na cama do hospital); e toda a sequência do segundo Rudy. Eis o momento mais contundente do filme: em poucos minutos, a persistência do ódio, o fascínio exercido por símbolos de violência e massacres, e a transformação da civilidade em ódio, numa simples mudança de perspectiva. Não é, ainda, o melhor de que Egoyan é capaz – mas é um passo (ou retorno) decisivo nessa direção.